Excerto histórico de uma de muitas conversas entre Francisco Sá Carneiro e Mário Soares. As contas de um não eram as contas do outro.
Todos à volta da mesma mesa: Mário Soares, Francisco Sá Carneiro, Diogo Freitas do Amaral e Álvaro Cunhal.
O então primeiro-ministro e secretário geral do PS, o presidente do PSD, o presidente do CDS e o secretário-geral do PCP juntaram-se num debate na RTP, em Dezembro de 1976.
Joaquim Letria moderou um debate sobre o poder local, com os temas descentralização, Madeira e Açores – mas também com espaço para situação económica de Portugal, endividamento externo, medidas de combate à crise, Reforma Agrária e manutenção da autoridade do Estado.
Contexto: as primeiras eleições autárquicas depois do 25 de Abril.
Soares e Sá Carneiro ficaram lado a lado, ali a poucos centímetros um do outro.
Quando Joaquim Letria pergunta a Sá Carneiro se os Governos Regionais nos Açores e na Madeira (ambos liderados pelo PSD) apoiavam o Governo central, começou a troca interessante de palavras.
Francisco Sá Carneiro começa por perguntar qual é a política do Governo Constitucional da República, a nível económico e financeiro.
Soares diz que Sá Carneiro deveria ter ficado elucidado ao ler o Orçamento do Estado: “Se não está elucidado, desculpe, mas a culpa não é do Governo neste caso“.
“Ai é, é. Porque li atentamente (o Orçamento) e chegámos à conclusão de que este Governo não tem uma política definida”, responde o líder do PPD.
Sá Carneiro garantia oposição ao PS: “Depois de estudarmos o Orçamento, com base nessa análise, resolvemos incentivar a nossa oposição ao Governo do Partido Socialista”.
E ia continuar: “Não mudamos de atitude em função do resultado das eleições para as autarquias locais. Nem tínhamos razão para mudar, porque a nossa posição foi fortalecida, somos o partido que mais maiorias absolutas tem nas Câmaras Municipais…”.
Até que foi interrompido por Mário Soares, que se estava a rir.
E aí começa o diálogo:
– Ri-se? – pergunta Sá Carneiro.
– Eu rio-me – responde Soares.
– Porquê?
– Rio-me, senhor doutor.
– Então diga lá, que isso é capaz de ser divertido.
– Rio-me porque o senhor doutor gosta de dar uma aparência (está no seu temperamento) de que as coisas são muito grandes e muito enormes.
– Olhe que o seu défice é muito grande e muito enorme. E infelizmente não é aparência, somos todos nós que o pagamos.
– Não, não são. Bem, mas continue.
– Não, não! Diga lá porque é que se riu!
Mário Soares explicou que achou “graça” e achou “cómico” o momento de “auto-satisfação, que é uma boa coisa” de Sá Carneiro, por ter destacado que o PPD tinha conseguido mais maiorias absolutas.
Francisco Sá Carneiro, depois de dizer que Mário Soares tinha acabado de soltar “afirmações sem conteúdo”, destacou uns números: o PS tinha naquela altura 36,8% dos mandatos nas autárquicas e o PSD tinha 31,8%. Comparando com as eleições legislativas do mesmo ano (25 de Abril de 1976), seria uma subida de 7 pontos percentuais para o PSD, e de apenas 2 pontos percentuais para o PS.
“Compare os dois aumentos e depois ria-se. Era isso que eu gostava”, completou Sá Carneiro.
Tal como hoje, cada um a puxar pelos números que mais dão jeito.
Mas a noite não acabaria assim: na contagem final, o PS ficou com 33,2% dos votos nas Câmaras Municipais e o PSD com 24,3%. Ou seja, ambos até desceram ligeiramente, comparando com as legislativas – e a diferença entre PS e PSD ficou quase igual.