E ainda um pedido invulgar dos taxistas, as filas na mercearia e os sacos de carvão. Eis o histórico 28 de Abril de 2025.
Quando pensávamos que já tínhamos tido a nossa “dose” com 11 de Setembro, com COVID-19, com guerras… Afinal ainda havia mais.
28 de Abril de 2025, um dia que fica na História de Portugal e de Espanha. O dia do apagão. As imagens acima mostram um pouco do que foi este dia.
Esta segunda-feira foi um dia inédito na Península Ibérica, que só não ficou literalmente às escuras porque a luz falhou a partir das 11h33 da manhã (12h33 em Espanha). Algumas regiões do sul de França também ficaram sem electricidade. Só as ilhas Açores e Madeira escaparam. Nada de luz, depois nada de internet, telefonemas, ou mesmo água.
Sabe-se que houve uma avaria – das grandes – em Espanha. Ainda não se sabe o que originou essa avaria.
Muito haveria para contar deste dia estranho no século XXI: hospitais, farmácias, metro, escolas, elevadores, aeroportos… Os relatos multiplicam-se.
Os responsáveis por mercearias agradeceram. Quem continuou com a porta aberta, beneficiou do que estava a acontecer nas grandes superfícies comerciais: ou fecharam à hora de almoço, ou vários produtos tinham esgotado. Em algumas mercearias – confirmou o ZAP – até se formavam filas inéditas.
Nos supermercados abertos, há relatos de que houve um pico de afluência de clientes às 14h, que se prolongou até perto das 15h. Depois da hora de almoço, os portugueses terão percebido que o apagão ia durar horas (temia-se que podia durar dias) e foram buscar essencialmente: água, leite, sacos de carvão, vela, fogões a gás, pilhas e rádio – já lá vamos.
Nos transportes – que já não contavam com os comboios devido a uma greve – reinou o caos nas maiores cidades. Metros parados, passageiros presos, autocarros cheios. Chegaram a estar cerca de 1000 pessoas ao mesmo tempo numa zona de paragens: na Gare do Oriente, em Lisboa.
Ainda nos transportes: os taxistas fizeram um pedido invulgar – pediram aos clientes para irem ter com os táxis a pé, porque não conseguiam ser contactados. Não havia comunicações.
A solidariedade habitual dos portugueses também foi visível: houve pessoas a sair de casa para dar garrafas de água a polícias que estavam a “fazer de semáforos”. Em dia de calor, os “sinaleiros” teriam sede. Muitos semáforos também não funcionaram – e houve acidentes.
Jovens a andar na rua sem olharem para o telemóvel: impossível? Aconteceu nesta segunda-feira. Outros estavam em casa a brincar com jogos de tabuleiro, com a família.
Muitas destas informações chegaram até nós graças à rádio. Essencialmente através da Antena 1, que teve (tal como outras estações) emissão especial ao longo de horas e horas. 28 de Abril foi o dia da rádio, não o 13 de Fevereiro. Ontem foi o dia em que a rádio voltou a ser elemento central para os portugueses. Se pensarmos bem: sem luz, e sem internet a partir de certa altura, quem é que esteve a ver televisão? Quase ninguém. Quem é que consultava sites? Quase ninguém. A rádio FM tomou conta dos ouvidos. Dos nossos, também.
O dia seguinte
Chegou a temer-se que Portugal ia ficar sem luz durante vários dias, em Espanha falou-se na possibilidade de a normalidade regressar só daqui a uma semana.
Mas esta terça-feira está a ser um dia normal, na maioria do país.
Os hospitais ainda não estão na “máxima força”, mas estão a caminho disso – e reforçaram equipas nas últimas horas.
As escolas estão a reabrir normalmente. Cada estabelecimento tem autonomia para tomar as suas decisões, mas em princípio abriram.
Os restaurantes também esperam um dia normal, depois de um dia com evidente quebra de facturação. A conservação dos alimentos foi um problema menor, segundo a Associação de Hotelaria, Restauração e Similares de Portugal (AHRESP).
Nos aeroportos, o dia ainda começou com atrasos ou cancelamentos relacionados com o dia anterior, mas as operações também vão voltando à normalidade.
Crónica do Vazio Elétrico: O Dia em que a Luz se Apagou no Espírito de um País
Na manhã dourada de 28 de Abril de 2025, o país mergulhou num silêncio mecânico e suspenso. Não foi apenas a eletricidade que falhou — foi a promessa da estabilidade, da previsibilidade, da confiança nos alicerces invisíveis que sustentam o quotidiano moderno. O que deveria ser apenas uma interrupção técnica revelou-se o sintoma de uma doença mais profunda: a incoerência dos que têm por missão garantir o funcionamento do sistema — neste caso, os timoneiros da ERSE, que, por negligência ou excesso de confiança, permitiram que regras antigas, pilares de segurança, fossem relegadas ao esquecimento. O resultado foi uma falha com consequências irrecuperáveis.
A eletricidade cessou. Mas, mais que isso, cessou o ritmo vital de um país inteiro. Hospitais a meio-pulso, linhas férreas silenciosas, semáforos mortos nas cidades, computadores emudecidos nas lojas, fábricas paradas no seu fôlego produtivo. Em segundos, os alicerces do mundo dito civilizado foram sacudidos — e por entre essa suspensão da normalidade, irrompeu o outro apagão: o moral, o psicológico, o coletivo.
O comportamento dos portugueses foi, mais uma vez, espelho de um trauma não resolvido. Comportamentos compulsivos, açambarcamentos desenfreados, corridas em massa às gasolineiras e supermercados, numa tentativa desesperada de dominar aquilo que, por natureza, nos escapa: a incerteza. Como tantas vezes na história recente, vimos o medo transformar-se em profecia autorrealizada. Ao correrem aos bancos e aos combustíveis, mataram a possibilidade de resiliência do próprio sistema. Ninguém pensa no outro quando se teme o colapso — e esse é o primeiro passo para o verdadeiro colapso.
Há algo de tragicamente poético neste reflexo coletivo. Como se, perante qualquer falha estrutural, procurássemos na desordem a validação das nossas ansiedades. Como se desejássemos confirmar, por instinto, que o mundo está mesmo à beira do fim. Mas não é o fim que nos encontra — somos nós que o fabricamos, pedaço a pedaço, em cada ato de egoísmo preventivo.
É preciso, pois, muito mais do que apurar responsabilidades técnicas — e sim, estas existem, e com gravidade. É necessário um novo pacto entre instituições e cidadãos, entre sistema e sociedade. Um pacto que reconheça a fragilidade da nossa era, mas que não se entregue a ela. Que reforce os mecanismos técnicos de resposta — urgentes, automáticos, invioláveis — mas que também cultive uma cultura cívica onde o medo não seja soberano.
Porque, no fundo, este apagão foi menos sobre luz e mais sobre sombra. Não a sombra do escuro natural, mas a sombra que projetamos com os nossos próprios gestos.
Artur Orfão
Um texto literário curioso, tom poético.