O grande apagão que abalou a Península Ibérica na segunda-feira está a reacender o debate sobre a gestão da REN e os riscos da dependência da importação de energia vinda de Espanha.
O apagão que deixou Portugal às escuras durante cerca de 11 horas esta segunda-feira está a trazer a debate um velho tema muito discutido na política — os efeitos da privatização de empresas públicas que gerem infraestruturas importantes, neste caso específico, a Redes Energéticas Nacionais (REN).
O assunto é particularmente relevante dado que, apesar de Portugal ter capacidade para ser autossuficiente na produção energética e de até ter batido recentemente recordes sucessivos nas energias renováveis, estava a importar 30% da sua eletricidade a Espanha devido ao preço mais barato.
Os críticos apontam que a priorização do lucro feita pelas empresas privadas deixa-nos dependentes de Espanha em situações de emergêcia e pode ser uma ameaça à soberania nacional.
“Espanha cai e nós caímos redondos no chão numa fração de segundo? Portugal é um país independente que eu saiba, há quase mil anos”, diz Clemente Pedro Nunes, especialista em energia, ouvido pela SIC Notícias. “Nós temos em Portugal uma capacidade de produção instalada, teoricamente pronta a funcionar, de 22 mil MW. O que estava a ser consumido na altura andaria pelos 8 mil MW. Portanto, a potência disponível é muito grande, está é mal planeada“, frisa.
Estas preocupações não são de agora. Em 2022, vários peritos já tinham alertado para os riscos de um apagão generalizado na rede elétrica portuguesa devido ao encerramento das centrais termoelétricas de Sines e do Pego, que aumentou ainda mais a dependência de Espanha.
João Bernardo, diretor-geral da Energia na altura, afirmou que o sistema nacional vivia “sobre brasas” e Clemente Pedro Nunes descreveu a situação como “inconcebível e revoltante“.
Se em Portugal os alertas já vinham desde 2022, um relatório publicado há dois meses pela Red Eléctrica Espanhola (REE) também previa o “perigo hipotético” de um apagão devido a possíveis “desconexões de geração” de energia elétrica que arriscam ser “severas” e afetar “significativamente” o abastecimento devido à elevada penetração de fontes de energia renovável.
A Redeia, empresa-mãe da REE, também emitiu alertas devido ao encerramento de centrais a carvão, gás natural e nucleares em Espanha, que deixaram o sistema elétrico do país mais vulnerável a imprevistos.
Com a crescente vulnerabilidade do sistema em Espanha e com a maior dependência de Portugal em relação aos vizinhos, o nosso país acabou por ser arrastado na falha.
Em declarações à CNN Portugal, Luís Mira Amaral, ex-ministro da Indústria e da Energia, criticou a demora na reposição da rede energética portuguesa. “Está em causa a capacidade de geração portuguesa, que estava parada por questões económicas”, assume.
“Passou a haver naturalmente uma tendência para maiores importações, porque há horas do dia em que sai mais barato importar energia elétrica de Espanha do que pôr as nossas centrais elétricas a produzir. É, no fundo, comparar os custos de importação com os custos das variáveis que as centrais poderiam produzir, e esse balanço mostra que às vezes é mais favorável importar de Espanha. Do ponto de vista económico, é justificável”, explica o especialista.
Mira Amaral remata que “o que não é justificável é, a partir do momento em que a rede espanhola tem um problema e tem de se desligar da rede portuguesa, nós entramos aqui em pânico”. As centrais portuguesas “têm capacidade de resposta rápida, mas não entraram porque apenas duas delas têm o chamado sistema de black start” que permite “injetar novamente potência na rede e restabelecer gradualmente os serviços”.
Mas há especialistas que defendem que a nacionalização da REN não impediria situações como o apagão desta semana. “Não me parece que a natureza pública ou privada do operador de rede, neste caso concreto, faça muita diferença. Porque temos exatamente o exemplo de um operador de rede 100% público (em Espanha) e de um operador de rede 100% privado, ou melhor, em regime de concessão do serviço público a (a REN), e o apagão ocorreu nos dois países”, considera o ex-ministro João Galamba, em entrevista ao ECO.
“Somos chamados de loucos”
Mariana Mortágua foi um dos rostos políticos que aproveitou a ocasião do apagão para lembrar dos riscos da privatização da REN.
“Há anos que andamos a dizer isto e somos chamados de loucos porque queremos nacionalizar a REN e a EDP e agora de repente o país percebeu porquê“, defendeu a líder bloquista.
A deputada do Bloco de Esquerda acredita que a nacionalização “é hoje mais importante do que nunca”. “Mais do que nunca se prova que a soberania de Portugal depende da sua capacidade para gerir, para controlar os sistemas de distribuição elétrica e a rede de eletricidade”, apontou.
“É óbvio que uma rede pública não evitaria todos os problemas, mas este evento mostrou-nos a fragilidade, mostrou-nos o quão sensível é a gestão desta rede pública em caso de estar ao serviço de interesses que não são o interesse do país”, argumentou.
Montenegro não descarta nacionalização
O primeiro-ministro está aberto a uma nova nacionalização da REN caso a AD vença as eleições e volte a formar governo. Confrontado com esta pergunta durante a conferência de impresa esta terça-feira, Luís Montenegro afirmou estar “disponível para aprofundar sem nenhum problema”.
Montenegro ressalva que “essas coisas não se devem fazer a quente”, mas frisa que já antecipou o debate sobre a REN “muito antes deste assunto poder ganhar a evidência que ganhou, fruto do apagão”.
Há já dois anos e ainda enquanto líder da oposição, numa entrevista à CNN Portugal, Montenegro já tinha afirmado que “é do interesse estratégico de Portugal ter a rede elétrica na posse do Estado”, mas lembrou ainda que a nacionalização “depende das finanças públicas”.
Privatizações já correram mal noutros países
Já houve más experiências em vários outros países que também privatizaram as suas redes elétricas, desde subidas galopantes dos preços ou falhas nas respostas a desastres naturais.
Em 1996, a Califórnia aprovou uma lei que desregularizava e privatizava parcialmente o seu mercado de eletricidade. As empresas que prestavam serviços públicos foram obrigadas a comprar eletricidade aos mercados de distribuição grossista em vez de gerá-la elas mesmas. Os preços foram limitados para os consumidores, mas não para os mercados grossistas.
Esta situação levou a que empresas de energia, como a Enron, aproveitassem a ocasião para explorar o sistema criando uma escassez artificial que fez disparar os preços até 800%. As concessionárias de serviços públicos tiveram que comprar eletricidade a preços muito inflacionados, mas não conseguiram repassar esses custos aos consumidores.
Em 2000 e 2001, a Califórnia enfrentou constantes apagões em massa devido à incapacidade das empresas de comprar energia. O Estado acabou por ter de gastar milhares de milhões de dólares em compras de eletricidade de emergência.
Ainda nos Estados Unidos, no rescaldo do furacão Maria, em 2017, a empresa de serviços públicos de Porto Rico foi privatizada após a destruição da maior parte da rede elétrica. A gestão da rede passou para a LUMA Energy, mas os moradores queixavam-se de cortes constantes e uma situação ainda pior do que quando a rede estava nas mãos do Estado. A contestação acabou por gerar protestos nas ruas e um pedido de cancelamento do contrato por parte do governo.
Em 2016, um apagão no estado da Austrália do Sul deixou a nu as fragilidades so sistema, que estava a apostar fortemente nas energias renováveis e que era, em grande parte, privado.
A crise foi causada por uma grande tempestade que derrubou linhas de transmissão críticas e causou um efeito dominó de apagões, acabando por deixar todo o estado às escuras. Os críticos argumentaram que o sistema privatizado e orientado para o lucro levou a cortes nos investimentos para reforçar a resiliência da rede e a uma má coordenação entre as várias operadoras.
Resta-nos agora esperar para ver se o apagão em Portugal vai motivar um debate político semelhante sobre o futuro da REN.
Apagão na Europa
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Deve a REN ser nacionalizada? Há vários desastres associados à privatização de redes elétricas
O Sector Energético (assim como outros Sectores Estratégicos) não pode ser administrado e fornecido por privados, pois coloca em causa a Segurança Nacional, o bem-estar, o orçamento e segurança dos Portugueses, a economia e a indústria, assim como o geral funcionamento do País.
Todas as privatizações e concessões a privados dos Sectores Estratégicos que foram efectuadas devem ser revertidas, sem qualquer tipo de indemnização pois as mesmas não foram pedidas nem autorizadas pelos Portugueses, e os seus responsáveis levados a Tribunal para serem condenados a pena de prisão efectiva.