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A “Muralha Verde” da China ia ser a solução para a desertificação. Criou um problema maior

UNCCD

A Grande Muralha Verde da China

O maior projeto de reflorestação do mundo trouxe inadvertidamente um surto imparável de alergias na China. Agora as autoridades debatem-se entre refazer o que foi conseguido — ou ceder ao pólen.

Há mais de quatro décadas, a China empreendeu uma das maiores proezas ambientais da história moderna: travar a desertificação que ameaçava vastas regiões do norte do país.

Para tal, ergueu uma imensa muralha, não de pedra, mas de árvores — com o objetivo de acalmar as tempestades de areia e recuperar terras perdidas pela erosão.

O que começou como uma ambiciosa experiência ecológica tornou-se numa das maiores campanhas de reflorestação do mundo. E essa “Grande Muralha Verde” conseguiu conter o avanço de desertos como o Gobi ou o Taklamakan.

Mas também semeou, literalmente, um novo problema: um surto imparável de alergias, conta o El Confidencial.

Desde 1978, o governo chinês plantou mais de 66 mil milhões de árvores numa extensão de 4.500 km, que cobrem províncias como a Mongólia Interior, Gansu e Shaanxi.

Este esforço massivo de reflorestação, que custou milhares de milhões de euros, restaurou com sucesso mais de 150.000 km² de cobertura florestal e reduziu significativamente a desertificação de desertos como o Gobi e o Taklamakan.

Os sucessos ambientais do projeto são inegáveis. Imagens de satélite mostram vastas extensões verdes onde dunas estéreis dominavam anteriormente a paisagem.

Entre 2008 e 2018, a frequência de tempestades de areia em Pequim diminuiu 70%, e os cientistas estimam que as florestas plantadas absorveram 5% das emissões industriais de CO₂ da China entre 1978 e 2017.

Contudo, esta transformação verde trouxe um custo inesperado. Cidades como Yulin na Província de Shaanxi e Hohhot na Mongólia Interior registam agora severos surtos sazonais de alergias — que afetam quase um em cada três habitantes.

O culpado é o pólen, particularmente da artemísia, uma espécie vegetal resistente escolhida pela sua capacidade de resistir a climas extremos e estabilizar dunas de areia.

Um estudo da Universidade Xi’an Jiaotong e do Instituto Florestal de Yulin, publicado no mês passado no Journal of Hazardous Materials, confirmou que o pólen de artemísia contém cinco compostos voláteis capazes de desencadear reações alérgicas severas através de recetores do sistema imunitário.

Durante as épocas de floração, nos meses de agosto e setembro, estas partículas microscópicas tornam-se aerotransportadas, causando vários sintomas — que vão da febre dos fenos até à asma brônquica.

O impacto na saúde é significativo. Enquanto a prevalência nacional chinesa de rinite alérgica é cerca de 18 %, as áreas dentro do cinturão da Grande Muralha Verde mostram taxas de 27 % em Yulin e 32 % na Mongólia Interior.

Comparativamente à média nacional, os residentes que vivem perto da Grande Muralha Verde têm quase o dobro da probabilidade de desenvolver alergias respiratórias .

Ma Bo, residente em Hohhot,é um exemplo deste problema. O que começou como espirros ocasionais e olhos lacrimejantes evoluiu para problemas respiratórios graves com episódios de asma, que se agravaram significativamente a partir de 2018. A sua experiência reflete milhares de casos similares em toda a região.

O problema estende-se além da artemísia. Salgueiros e choupos, escolhidos pelo crescimento rápido e resistência, produzem quantidades massivas de pólen que é levado pelo vento. Na primavera, os seus amentilhos flutuam como neve pelas ruas de Pequim, criando uma “mistura explosiva” no ar.

Os governos locais estão agora a implementar medidas de emergência. Pequim investiu 747 milhões de euros para substituir árvores problemáticas por espécies menos alergénicas como ginkgos e ameixeiras, e aplica hormonas vegetais para prevenir a formação de gomos nas árvores existentes.

Contudo, estes esforços são dispendiosos e lentos.

A seleção de espécies refletiu as condições desafiantes do norte da China – verões secos e quentes, invernos gelados e terreno árido, que exigiam variedades resistentes e de crescimento rápido capazes de estabilização do solo.

Primeiro tivemos que ficar verdes, depois pudemos pensar em tudo o resto”, admite Gu Lei, professor de botânica da Universidade Normal da Capital, à Bloomberg.

Este desafio não é único da China. Globalmente, a urbanização e as alterações climáticas estão a prolongar e intensificar as épocas de pólen, nota a BBC.

A rinite alérgica afeta agora uma em cada cinco pessoas na maioria dos países industrializados, com taxas que atingem duas em cada cinco pessoas em áreas sensíveis como o Japão. E embora a febre dos fenos ou rinite alérgica não sejam novidade, são agora mais persistentes e duram mais tempo.

As alterações climáticas agravam o problema, criando primaveras mais longas e quentes que antecipam as épocas de pólen e multiplicam a sua intensidade. Estudos recentes concluíram que as épocas de pólen se intensificaram nas últimas três décadas, à medida que o clima aqueceu.

A China está agora a prosseguir uma abordagem mais equilibrada, selecionando espécies apropriadas ao ecossistema com menor potencial alergénico.

Contudo, como explica Yin Ja, especialista do Hospital Universitário de Medicina de Pekín, “opólen pode espalhar-se dezenas a centenas de quilómetros com uma única rajada de vento“, destacando a complexidade de abordar esta consequência não intencional da restauração ambiental.

A história da Grande Muralha Verde é um exemplo de como por vezes ficamos presos por ter cão, outras por não o ter: mesmo um projeto ecológico bem-intencionado pode criar desafios imprevistos, que requerem soluções adaptativas — e por vezes dar um passo atrás.

A China e o Japão já estão a fazê-lo, tendo nos últimos anos lançado programas para baixar a concentração de espécies alergénicas nas cidades.

O governo do Japão planeia substituir 20% dos cedros artificiais do país por árvores menos alergénicas, durante os próximos 10 anos — o equivalente ao abate de cerca 70 mil hectares por ano.

Esta é uma solução drástica, que ainda não foi discutida na Europa; mas se um dia começarmos a ver os nossos governos a deitar abaixo quarteirões inteiros de árvores, não se preocupe: paradoxalmente, pode ser pela sua saúde.

Armando Batista, ZAP //

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