Ocupação, dois estados ou protetorado. O que acontece à Palestina depois da guerra?

Abbas Momani / AFP

As hipóteses são várias. Eis alguns pontos essenciais sobre os cenários pós-conflito defendidos pelas diferentes partes.

Embora se perfile uma trégua humanitária condicionada às exigências das várias partes, o conflito desencadeado a 7 de outubro prossegue sem fim à vista.

Com as forças israelitas a reforçarem o seu controlo em Gaza e a destruírem os centros de poder do Hamas e infraestruturas civis, Estados Unidos, União Europeia, Nações Unidas e países árabes já começaram a tomar posição sobre a administração do território pós-guerra.

Segundo dados das autoridades locais da Faixa de Gaza, controlada pelo Hamas, cerca de 45% de todas as habitações do enclave já foram destruídas ou gravemente danificadas.

Eis alguns pontos essenciais sobre os cenários pós-conflito defendidos pelas diferentes partes.

Protetorado da ONU em Gaza rejeitado por Guterres

A 20 de novembro, o secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, rejeitou que Gaza se torne “protetorado da ONU” depois da guerra, defendendo em alternativa uma “transição” envolvendo múltiplos atores, nomeadamente os Estados Unidos e os países árabes.

“É importante poder transformar esta tragédia em oportunidade e, para que isso seja possível, é essencial que depois da guerra avancemos de forma decisiva e irreversível em direção a uma solução de dois Estados”, disse António Guterres à imprensa na sede da ONU.

Isto requer que “a responsabilidade por Gaza seja assumida por uma Autoridade Palestiniana fortalecida”, mas esta “não pode ir para Gaza com os tanques israelitas”, pelo que “a comunidade internacional deve considerar um período de transição”, adiantou.

“Não creio que um protetorado da ONU em Gaza seja uma solução. Penso que precisamos de uma abordagem multilateral, onde diferentes países, diferentes entidades, irão cooperar”, disse Guterres.

Israel quer controlo de Gaza

O primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyahu, assegurou que Israel continuará a controlar Gaza após o fim do conflito com o Hamas, garantindo, por outro lado, que não permitirá que forças internacionais participem num eventual acordo.

Netanyahu tem vindo a moldar o seu discurso nos últimos dias, com sucessivas entrevistas nas quais tem afirmado que Israel assumirá “responsabilidade de segurança” sobre a Faixa de Gaza por um “período indefinido”, mas que não tem intenção de reocupar o território.

Apesar de aparente oposição a este cenário pelos Estados Unidos, o primeiro-ministro israelita, noutra declaração, disse querer “outra coisa” em vez da Autoridade Palestiniana (AP), presidida por Mahmoud Abbas, a governar a Faixa de Gaza, após a guerra que está a travar para “erradicar” o grupo islamita Hamas.

“Não pode haver uma autoridade dirigida por alguém que, mais de 30 dias após o massacre [de 07 de outubro], ainda não o condenou (…). Será necessário algo mais lá. Mas, em todo o caso, terá de haver o nosso controlo de segurança”, afirmou Netanyahu, insistindo que Israel precisa de “um controlo de segurança total, com a possibilidade de entrar sempre que quiser, para retirar os terroristas que possam surgir novamente”.

“Realojamento voluntário” fora de Gaza

Mais radical do que Netanyahu, o ministro da Segurança Nacional de Israel, Itamar Ben Gvir, de extrema-direita, defende que a AP “deve ser tratada da mesma forma” que o Hamas, pois o conceito de Palestina falha em Gaza como também na Judeia e Samaria (nome bíblico para a Cisjordânia usado pelas autoridades israelitas para se referirem ao território].

“Temos de confrontar o Hamas e a AP, que tem uma visão semelhante à do Hamas e cujos dirigentes simpatizam com o massacre perpetrado pelo Hamas [nos ataques de 07 de outubro], da mesma forma que o fazemos em Gaza”, afirmou.

Ben Gvir disse que confiar no Presidente da ANP, Mahmoud Abbas, que descreveu como “um negacionista do Holocausto”, é um ato de “ilegalidade”. “A contenção vai rebentar-nos na cara, tal como aconteceu em Gaza. É altura de agir”, afirmou.

Segunda-feira, o ministro das Finanças israelita Bezalel Smotrich, ligado à extrema-direita, disse que Israel deveria “desmoronar o sistema estatal” em Gaza.

Outro membro do Governo de Netanyahu, a ministra da Informação Gila Gamliel, foi ainda mais longe e roçou a ideia do desaparecimento dos palestinianos da região, ao afirmar que a comunidade internacional devia “promover o realojamento voluntário” de palestinianos fora da Faixa de Gaza, noutros países.

“Em vez de enviar dinheiro para reconstruir Gaza ou para a fracassada UNRWA [a agência das Nações Unidas para os refugiados palestinianos], a comunidade internacional podia ajudar a financiar o realojamento e ajudar os habitantes de Gaza a construir as suas novas vidas nos seus novos países de acolhimento”, afirmou Gamliel em artigo publicado no jornal Jerusalem Post.

Membro do Likud, o partido liderado por Netanyahu, Gamliel defende esta solução por considerar que “todas as outras falharam”, nomeadamente a retirada dos colonatos da Faixa de Gaza e a “construção de muros altos na esperança de manter os monstros do Hamas fora de Israel”.

“Seria uma situação em que todos ganhariam: para os civis de Gaza, que querem uma vida melhor, e para Israel, depois desta terrível tragédia”, afirmou a ministra.

Autoridade Palestiniana quer continuar a governar

O presidente da AP, Mahmoud Abbas, curiosamente no discurso que assinalou o 35.º aniversário da declaração de independência da Palestina, acusou Israel de travar um conflito contra a existência dos palestinianos, salientando a “bárbara agressão e uma guerra aberta de genocídio contra o povo na Faixa de Gaza e na Cisjordânia, incluindo Jerusalém, a capital eterna” palestiniana.

O presidente da AP tem a sede em Ramallah, na Cisjordânia ocupada, geograficamente separada da Faixa de Gaza por território israelita. O Hamas controla a Faixa de Gaza desde 2007. Abbas, 88 anos, disse que a Palestina é a terra onde o povo palestiniano “vive há mais de 6.000 anos” e considerou vergonhoso haver quem apoie a agressão israelita e lhe dê cobertura política e militar.

“[A Faixa de Gaza] foi e continuará a ser para sempre parte integrante do território do Estado da Palestina. E é parte integrante das nossas responsabilidades nacionais que não podemos abandonar”, acrescentou, numa altura em que se questiona quem assumirá o controlo da Faixa de Gaza se Israel derrotar o Hamas.

Abbas recordou a declaração de independência como o corolário da luta histórica da Organização de Libertação da Palestina (OLP). Disse que o povo decidiu que a OLP “seria o seu único representante legítimo, o portador do seu estandarte nacional e o guardião do sonho da independência, do regresso e do Estado”.

Irão quer Hamas no poder em Gaza

O Presidente do Irão, Ebrahim Raisi, exige uma “decisão firme” dos países da Organização de Cooperação Islâmica (OCI) de apoio aos palestinianos e condenação das ações de Israel na Faixa de Gaza, garantindo novamente o apoio à manutenção do Hamas no poder no enclave.

O Irão é aliado do Hamas e também do grupo xiita libanês Hezbollah, com quem as forças israelitas trocam ataques quase diariamente na fronteira libanesa.

A 17 deste mês, o chefe da Força Quds da Guarda Revolucionária do Irão prometeu que Teerão e outros membros do “eixo da resistência” impedirão Israel de atingir os seus objetivos em Gaza, incluindo a eliminação do Hamas.

UE e EUA insistem nos dois Estados

Tal como afirmaram os presidentes da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, e do Egito, Abdelfatah al-Sisi, o chefe de Estado norte-americano, Joe Biden defendeu que a solução de dois Estados é “mais necessária do que nunca”, sublinhando que Gaza e a Cisjordânia devem permanecer nas mãos da AP, mas só depois de Israel conseguir derrotar o Hamas na Faixa de Gaza.

“A solução de dois Estados é a única forma de garantir a segurança a longo prazo tanto do povo israelita como do povo palestiniano. Embora possa parecer um tiro no escuro agora, esta crise tornou-a mais necessária do que nunca”, afirmou Biden num artigo de opinião publicado a 18 deste mês no The Washington Post.

Na opinião de Biden, para alcançar a solução de dois Estados, vivendo lado a lado com condições iguais de “liberdade e dignidade”, é necessário o empenho de israelitas e palestinianos, bem como dos EUA e dos seus aliados.

Para Biden, não deve haver “deslocação forçada” de palestinianos de Gaza, nem “reocupação, cerco, bloqueio ou redução do território” da Faixa por parte de Israel.

Para a Casa Branca, Gaza e a Cisjordânia “devem ser reunidas sob uma única estrutura de governo, em última análise sob uma ANP revitalizada”.

No mesmo tom, o alto representante da diplomacia europeia, Josep Borrell afirmou que a solução de dois Estados seja real é necessário deixar claras as linhas vermelhas que não podem ser ultrapassadas: não há reocupação dos territórios palestinianos nem deslocação forçada da população palestiniana.

Para Borrell, não há três territórios palestinianos: Faixa de Gaza, Cisjordânia e Jerusalém Oriental. “Há um território palestiniano. Portanto, não haverá redução do território de Gaza”, disse na sua intervenção.

Perante este cenário, Borrell afirmou que “o Hamas já não pode ter o controlo de Gaza” e apontou a ANP como a “única” entidade que o poderá fazer.

Países árabes duvidam da Autoridade Palestiniana

Segundo o colunista do The Washington Post Ishaan Tharoor, nem Israel nem os seus vizinhos árabes têm interesse em repetir os ciclos anteriores de conflito, destruição e reconstrução.

“Nesta altura, muitos em Israel não estão preocupados com o que virá a seguir, dado o desejo generalizado de neutralizar o Hamas depois do que este infligiu a civis israelitas inocentes. Alguns políticos da direita israelita, incluindo ministros do gabinete de Netanyahu, querem impor um preço ainda mais elevado à população de Gaza”, acrescentou.

E esses doadores de países terceiros também enfrentam questões difíceis, frisou Tharoor, que recorreu às palavras de Gregg Carlstrom, do The Economist: “Os governantes árabes não querem limpar a ‘porcaria’ de Israel e ajudar a policiar os seus compatriotas árabes”.

“Mas também não querem ver Israel reocupar o enclave e admitem, pelo menos em conversas privadas, que a AP é demasiado fraca para retomar o controlo total de Gaza. Se nenhuma destas opções é realista ou desejável, não se sabe o que será”, declarou à margem de uma conferência regional no Bahrein.

Israel “não vai reocupar” Faixa de Gaza

O ministro dos Assuntos Estratégicos israelita, Ron Dermer, já garantiu que “Israel não vai reocupar a Faixa de Gaza”, numa entrevista ao canal norte-americano MSNBC este mês.

“Nós retirámo-nos completamente de Gaza há 17 anos e recebemos de volta um Estado terrorista. Não podemos repetir isto, é óbvio. Assim que o Hamas deixar de estar no poder e as infraestruturas forem desmanteladas, Israel deve ter a responsabilidade geral pela segurança durante um período indefinido”, disse, na terça-feira à noite, Dermer, que tem assento como observador no gabinete de guerra de Israel.

Questionado sobre a forma como esta responsabilidade será organizada, Dermer reconheceu que a questão permanece em aberto, mas disse que “não será uma ocupação”.

Os comentários deste antigo embaixador israelita nos EUA, próximo do primeiro-ministro, Benjamin Netanyahu, surgem depois de Washington ter afirmado que se opõe a uma nova ocupação a longo prazo de Gaza por parte de Israel.

“Em geral, não apoiamos uma reocupação de Gaza, nem Israel”, declarou o porta-voz do Departamento de Estado norte-americano, Vedant Patel, aos jornalistas, na terça-feira.

“Reocupação não é a coisa certa”. Quem vai gerir Gaza depois da guerra?

Esta reação surge na sequência das declarações de Netanyahu, na segunda-feira, de acordo com as quais pretende que Israel assuma “a responsabilidade geral pela segurança” do território após a guerra.

“Estamos em discussões ativas com os nossos homólogos israelitas sobre como deverá ser a Faixa de Gaza após o conflito. O Presidente, Joe Biden, mantém a sua posição de que a reocupação pelas forças israelitas não é a coisa certa a fazer”, disse o porta-voz da Casa Branca, John Kirby, numa conferência de imprensa.

“Há uma coisa sobre a qual não há absolutamente nenhuma dúvida: o Hamas não pode fazer parte da equação”, acrescentou.

O porta-voz do Hamas, Abdel Latif al-Qanou, reagiu na plataforma de mensagens Telegram a estas declarações, afirmando que “o que Kirby disse sobre o futuro de Gaza depois do Hamas é uma fantasia. O nosso povo está em simbiose com a resistência e só ele decidirá o seu futuro”.

Dermer admitiu que Israel terá de enfrentar a dificuldade do “dia seguinte”, depois da eliminação do Hamas. “Quem é que vai gerir Gaza? Se for uma força palestiniana que governe Gaza para o bem-estar dos habitantes e sem querer destruir Israel, então podemos falar”, afirmou.

ZAP // Lusa

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