Os uigures têm inveja dos ucranianos

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Um pouco por todo o mundo, povos de diferentes países estão solidários com o povo ucraniano, que enfrenta uma guerra iniciada por um inimigo muito mais poderoso — enquanto rezam, nas suas respetivas religiões, por não ter que enfrentar destino semelhante.

Mas algumas pessoas nesses mesmos cantos do mundo observam a situação na Ucrânia não só com interesse — por mais estranho que possa parecer, também com um pouco de inveja dos ucranianos.

Nas suas orações, essas pessoas pedem silenciosamente aos seus deuses: “Será que nos podes dar uma oportunidade igual à dos ucranianos?”

Quem são estas pessoas? São os uigures da Região Autónoma chinesa de Xinjiang, que há muitos anos enfrentam o genocídio infligido pela China há anos — que a Amnistia Internacional considerou em 2021 um cenário infernal distópico.

Há algumas razões para os uigures invejarem os ucranianos.

Numa conferência de imprensa, em fevereiro, três dias após a invasão da Rússia, o presidente ucraniano Volodymyr Zelenskyy afirmou e sua coragem e lealdade ao povo. “Estou aqui. Não vamos baixar as armas. Vamos defender o nosso país”, disse então.

No mesmo dia, avisou por videoconferência os principais líderes mundiais: “Esta pode ser a última vez que me veem vivo”. Quase dois meses mais tarde, a Ucrânia resiste e o seu presidente está vivo.

Para os uigures, a história foi diferente.

O ano passado, os líderes uigures Shirzat Bawudun e Sattar Sawut, acusados de atividades “separatistas”, dirigiram-se à comunicação social do país e anunciaram: “Estou arrependido, cometi um erro” — declarações que, segundo a AP, foram forçados a fazer pelo estado chinês.

A diferença entre os líderes destes dois povos não é o nível de patriotismo ou o seu caráter, mas o estatuto político dos seus povos.

Uma região já foi invadida, a outra está a enfrentar atualmente uma invasão. Uns falam sob a ameaça de tanques, os outros sofrem torturas.

Atualmente, ucranianos dos 7 aos 70 anos assumem abertamente as suas posições. “Sou contra a ocupação. Disparam contra os seus inimigos, defendem as suas cidades, expressam os seus ódios, mostram a sua raiva, enterram os mortos e cuidam dos feridos.

Em Xinjiang, porém, os uigures são obrigados a agradecer à China, que ocupa a sua pátria, violou os seus direitos e saqueou as suas riquezas.

Os que não mostram gratidão à China são presos por suspeita de separatismo, terrorismo e extremismo.

Quase três meses após o início da invasão, cerca de 4 milhões de ucranianos fugiram do seu país para salvar a vida e procuraram ajuda em países vizinhos.

Os uigures estão proibidos de mudar de casa sem autorização.

Nos últimos 10 anos, os uigures que tentaram escapar à proibição, fugindo sem passaporte ou com passaporte falso, e cruzar a fronteira para os países vizinhos, foram deportados por esses países para a China.

Alguns uigures com mais sorte encontraram refúgio na Polónia.

Segundo Rosemary DiCarlo, subsecretária-geral da ONU para assuntos políticos e de construção da paz, à data de 7 de abril, a invasão da Ucrânia tinha já causado a morte de pelo menos 1.480 civis, incluindo 165 crianças, e a deslocalização de mais de 11 milhões de pessoas.

Embora chocantes, estas mortes foram rápidas.

Em contraste, mais de três milhões de uigures morreram lentamente em prisões e campos de concentração nos últimos cinco anos.

Em janeiro, Erkin Sidick, presidente da Fundação Uigur Projects, perguntava, no seu perfil no Twitter: “para onde foram 8,3 milhões de uigures nos últimos 2 a 3 anos?”

Segundo ativistas uigures, mais de 500 cadáveres são entregues diariamente às suas famílias. Mas apenas os deuses e os responsáveis chineses conhecem o número total real de mortos uigures até hoje.

Ninguém sabe quando este “genocídio em curso” vai terminar. É compreensível, portanto, que considerem as mortes sangrentas dos ucranianos como tranquilas e fáceis.

O que os uigures acham mais interessante sobre a situação ucraniana, no entanto, é a atenção internacional que está a receber.

Se um ucraniano perde a vida, recebe cobertura noticiosa. Mas a situação dos uigures atrai pouca atenção mundial.

Basta olhar para o nosso próprio ZAP: à data desta edição, em menos de 3 meses, a invasão da Rússia foi coberta em 394 notícias. Sobre a situação dos uigures, há apenas 108 notícias, publicadas em 9 anos.

Em fevereiro, 27 países europeus, com os quais os ucranianos se sentem culturalmente identificados, emitiram uma declaração de apoio aos ucranianos e impuseram sanções à Rússia — que têm, desde então, sido agravadas.

Mas curiosamente, o mundo muçulmano, ao qual pertencem os uigures, votou ao lado da China sobre a questão dos uigures na ONU.

O secretário-geral da ONU, António Guterres, condenou a Rússia no segundo dia da guerra e pediu o fim da invasão. Mas foram necessários cinco anos desde a denúncia do genocídio uigur para pedisse à China que permitisse uma investigação sobre a situação uigur.

Entre outras sanções impostas à Rússia, foram canceladas ou suspensas competições desportivas — entre os quais um Mundial de Futebol e um Grande Prémio de Fórmula.

No caso uigur, o mundo premiou a China com os Jogos Olímpicos de Inverno enquanto o genocídio uigur estava a ocorrer.

Não admira, assim, que a maior parte dos uigures sinta inveja (da maior parte) dos ucranianos. Tal como, provavelmente, a maior parte dos hmong.

Armando Batista / ZAP // Global Voices

2 Comments

  1. As mesmas ambições imperialistas tal como os russos! Agora os chineses disfarçadamente vão dando a mão aos russos, mas um dia vai ter que ficar claro quem de entre ambos tomará o poder dos países antidemocráticos, duvido que os chineses apoiem a expansão russa sem limites, seria extremamente perigoso para eles!

  2. China e Rússia são chamadas ditaduras modernas e são um perigo que o mundo ocidental tem de travar. Quanto mais tempo o demorarem a fazer mais difícil será…

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