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Um médico comeu fezes de pacientes — e encontrou a causa de uma epidemia

Wellcome Collection / Wikimedia

O médico Joseph Goldberger.

Para provar a sua teoria, Joseph Goldberger sujeitou-se a comer um comprimido com urina, pele e fezes de pacientes infetados.

A nutrição, que está em voga hoje em dia, foi por muito tempo uma área negligenciada da medicina.

Por mais estranho que pareça, os estudos que investigavam a relação entre a alimentação e a saúde eram notavelmente lentos, e uma parte significativa do conhecimento foi obtida graças a médicos que faziam experiências em si mesmos, colocando em risco as suas próprias vidas.

Médicos como Joseph Goldberger, um judeu de Nova Iorque que em 1914 chegou ao extremo sul dos Estados Unidos.

Lá, ele deu um salto intelectual que o levou a desvendar um mistério, salvar dezenas de milhares de vidas e obrigar os governos, pela primeira vez, a intervir no que a população comia.

Ele tinha sido enviado pelo cirurgião-geral dos Estados Unidos (principal porta-voz do governo para assuntos de saúde pública) para investigar uma epidemia que assolava os estados do sul do país.

A pelagra era uma doença horrível. Começava com o que parecia ser uma leve queimadura solar nas mãos, e transformava-se numa erupção cutânea em forma de borboleta no rosto. De seguida, vinha a depressão, a confusão e a demência. Cerca de 40% dos casos terminava com a morte dos pacientes.

Estava a matar milhares de norte-americanos todos os anos — e deixando dezenas de milhares doentes. A missão de Goldberger era encontrar a causa.

Wellcome Images / Wikimedia

Ilustração de uma criança com pelagra num hospício de Londres.

Um detalhe crucial

A doença tinha aparecido do nada e, nas casas em que havia uma pessoa “contaminada”, havia 80% de probabilidade de os demais moradores adquirirem a condição.

Não surpreende que tenha sido considerada altamente infecciosa, e aqueles que sofriam dela eram evitados como leprosos.

Goldberger tinha o apoio do cirurgião-geral, mas como filho de imigrantes, sempre se viu como um estranho, um inconformista.

“Ao longo da vida, Joseph Goldberger foi fascinado pelo oeste americano e pelo faroeste. E grande parte do seu trabalho de detetive médico e da sua luta contra a epidemia foram uma extensão desse desejo de ser um aventureiro que conquistava algo valioso”, diz Alan Kraut, autor de “Goldberger’s War” à BBC.

“Ele via-se em parte como um cowboy solitário a nadar contra a corrente, disparando balas científicas”, confirma o médico Don Sharp, neto de Goldberger.

Goldberger viajou pelo sul dos Estados Unidos, localizando a doença em prisões, orfanatos e asilos. E reparou em algo surpreendente. A pelagra afetava os reclusos, mas não os funcionários.

Ele percebeu então que não poderia ser uma doença infecciosa, como insistia a maioria dos seus colegas médicos. Tinha que ser outra coisa.

Goldberger logo se convenceu de que havia algo na dieta que estava a causar a pelagra. Mas sabia que criticar a comida sulista na qualidade de alguém proveniente do norte não o tornaria popular.

“Para conseguir que os cientistas apoiassem a sua convicção de que a pelagra era uma deficiência alimentar, e não uma doença germinal, ele precisava de evidências”, diz Kraut.

Foi então que idealizou uma experiência controversa. Ele decidiu que selecionaria 12 homens perfeitamente saudáveis ​​e faria com que adquirissem pelagra. Os “voluntários” viriam de uma prisão do Mississippi.

Naquela altura, muita gente, sobretudo os pobres, comia o que era considerado uma iguaria típica do sul, e nada mais. Comiam toucinho — uma camada de gordura sob a pele do porco — crocante, farinha de milho e melaço.

“Tudo o que os prisioneiros tinham que fazer era comer a comida normal, sem carne fresca, ovos, legumes nem verduras”, explica o neto de Goldberger.

“Inicialmente, os participantes acharam fantástico”. Mas depois de seis meses, todos os prisioneiros desenvolveram pelagra — e Goldberger suspendeu a experiência.

Ele agora estava totalmente convencido de que uma deficiência alimentar era a causa da pelagra. Mas a comunidade científica discordou.

“Eles criticaram a metodologia e os resultados e insistiram que, independentemente do que Goldberger tinha mostrado, era uma doença germinal, e não tinha encontrado o germe”, conta Kraut.

Goldberger ficou furioso. “Aqueles burros, egoístas, invejosos e preconceituosos relinchando as suas supostas críticas.”

A essa altura, ele estava tão desesperado que estava disposto a fazer praticamente qualquer coisa. Para calar os críticos e provar, sem sombra de dúvidas, que a pelagra não era uma doença infecciosa, decidiu fazer algo ainda mais controverso: testar em si mesmo.

“Não impus nenhuma restrição de nenhum tipo… Nenhuma tentativa foi feita para evitar a ‘infeção natural'”, escreveu.

A primeira coisa que fez foi ir ao hospital local de pelagra e, usando um cotonete, recolheu muco do nariz dos pacientes e introduziu na sua própria narina.

“O tempo decorrido entre a recolha e a inoculação foi de menos de duas horas. Aliás, talvez deva ser tido em conta que algumas das secreções aplicadas na nasofaringe devem ter sido engolidas”, detalhou.

Depois, recolheu amostras de urina, pele e fezes. “O paciente que fornecia as fezes sofria de um caso grave e tinha quatro evacuações intestinais moles por dia.” Ele misturou esses ingredientes com farinha de trigo para fazer um comprimido… e engoliu.

Festa da imundície

“Há certamente uma qualidade repugnante na ideia de ingerir as fezes e crostas de pele de outras pessoas”, destaca Kraut.

“Nós, da família, sempre achamos inacreditável que ele se colocasse em risco dessa maneira. Muitas vezes, quando falamos sobre isso entre familiares ou grupos de amigos, estremecemos”, diz Sharp.

Goldberger convenceu, inclusive, os seus colegas a participar nas experiências, que ele chamava de “festa da imundície”. Como se não bastassem as fezes e a urina, Goldberger tinha uma última surpresa para eles: sangue.

Ele recolheu um pouco de sangue de uma paciente para injetar em cada um dos voluntários, incluindo a sua esposa, Mary.

“Acho que a minha avó queria fazer tudo o que podia para ajudar a calar os críticos”, avalia Sharp.

“Os homens não consentiram que eu engolisse os comprimidos, mas deram-me uma injeção no abdómen com o sangue de uma mulher que estava a morrer de pelagra”, escreveu Mary.

Qualquer tipo de doença pode ter sido transferida naquela agulha. “Foi um ato de fé. Não precisei de coragem”. A fé de Mary foi recompensada. Nenhum dos voluntários ficou doente.

“O meu avô ficou muito emocionado e muito feliz porque nenhuma das pessoas que participaram da festa da imundície sofreram de algo sério além de um pouco de diarreia. E certamente nenhum deles teve pelagra”.

Goldberger achou que finalmente tinha conseguido — tinha todas as evidências necessárias para provar que a pelagra não era contagiosa.

A condição tinha que ser causada por algum elemento que faltava na dieta sulista. O seu caso era absolutamente irrefutável. Era hora de torná-lo público e aceitar os aplausos. Mas o que recebeu foi uma enxurrada de críticas violentas e amargas da população do sul.

“Se (o facto de que) era judeu, nova-iorquino e federalista desempenhou um papel na forma como ele foi tratado e repreendido ou se foi apenas por causa do que ele estava a dizer, é claro que nunca vamos saber”, observa Sharp.

Goldberger percebeu que nunca iria convencer os médicos de que a pelagra era causada por uma deficiência alimentar, a menos que encontrasse uma cura simples e barata.

Alguns anos depois…

Em 1923, Goldberger finalmente encontrou o que procurava — e a descoberta aconteceu de forma curiosa.

Ele vinha a fazer experiências com cães, tentando que adquirissem pelagra ao fazê-los comer uma dieta sulista. O problema era que os cães não queriam comer aquela comida. Então ele acrescentou o que descreveu como um estimulante de apetite. Meses passaram-se, e os cães ainda estavam saudáveis.

Goldberger finalmente percebeu que o estimulante era o que estava a proteger os animais — era a resposta que ele vinha a procurar todos aqueles anos.

Não é animal, não é vegetal, não é mineral. É levedura. Em 1927, tinha finalmente chegado a hora de Goldberger.

Inundações tinham provocado outro surto de pelagra. E Goldberger levou levedura para os refugiados. Foi assombroso. Apenas algumas colheres de chá por dia eram suficientes para curá-los. Goldberger foi finalmente proclamado um herói.

Alguns anos depois, um químico finalmente isolou o fator de prevenção da pelagra na levedura. É uma vitamina chamada niacina.

O governo dos Estados Unidos ordenou que as fábricas fortificassem a farinha com niacina. Outros países seguiram o exemplo, e a pelagra logo tornou-se uma doença rara.

Agora sabemos que a niacina é essencial para uma pele saudável e para o bom funcionamento do sistema digestivo e nervoso.

Mas o que Goldberger realmente mostrou foi o forte vínculo entre a alimentação e a saúde. Há uma relação direta entre o que comemos e como vivemos com o que nos deixará doentes, e é exatamente isso que Joseph Goldberger queria que o mundo entendesse.

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