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Helsínquia passou um ano inteiro sem uma única morte no trânsito. Foi uma opção

Tapio Haaja / Unsplash

Aleksanterinkatu, Helsínquia, Finlândia

As capitais nórdicas continuam a mostrar-nos como podemos eliminar as mortes no trânsito. Helsínquia, tal como Oslo e Estocolmo, praticamente eliminaram os acidentes fatais na estrada.

A capital da Finlândia estabeleceu um novo marco mundial ao registar um ano inteiro com zero mortes relacionadas com o trânsito: a última morte na estrada em Helsínquia aconteceu em julho de 2024.

Este resultado extraordinário não foi um mero acaso, nem se tratou de um ano atípico — mas sim o culminar de décadas de implementação sistemática de uma filosofia de segurança especificamente concebida para erradicar a sinistralidade rodoviária na cidade, conta o ZME Science.

Velocidades mais baixas, câmaras automáticas e planeamento urbano inteligente ajudaram, mas foi a visão global que tornou este resultado possível.

A população metropolitana de Helsínquia ronda os 1,5 milhões de habitantes, cerca do dobro da população do concelho de Lisboa.

Mas enquanto em 2024, segundo o Relatório Anual de Sinistralidade da ANSR, a capital portuguesa registou 8 vítimas mortais em acidentes rodoviários, Helsínquia acaba de completar um ano sem qualquer acidente.

“Muitos fatores contribuíram para isto, mas os limites de velocidade são dos mais importantes”, diz Roni Utriainen, engenheiro de trânsito da Divisão do Ambiente Urbano da cidade.

Mais de metade das ruas de Helsínquia têm limite de velocidade de 30 km/h. Há meio século, a cidade mal tinha metade da sua área com limite de 50 km/h. Estes limites foram sendo gradualmente reduzidos — especialmente junto a escolas e jardins de infância.

O desenho mais inteligente das ruas também teve um papel fundamental, e foi dada prioridade às melhorias das infraestruturas para peões e ciclistas nos últimos anos. Cada vez mais pessoas começaram a usar transportes públicos, bicicletas ou simplesmente a andar a pé.

Investimentos substanciais tornaram também os transportes públicos mais eficientes e fiáveis. “Os transportes públicos em Helsínquia são excelentes, o que reduz o uso do carro e, consequentemente, o número de acidentes graves”, observa Utriainen.

Outro elemento fundamental foi conseguir o apoio da polícia. Helsínquia introduziu câmaras de trânsito automáticas e sistemas de fiscalização, que também ajudaram a reduzir a condução imprudente.

Não se trata apenas de acidentes mortais ou graves. Nos anos 80, havia cerca de 1000 acidentes com feridos, e as mortes no trânsito rondavam as 30 por ano. No ano passado, o número de acidentes graves caiu 75%.

Prioridade à vida em vez dos carros

Os responsáveis da cidade de Helsínquia deixam muito claro: o ano sem mortes não é uma anomalia estatística ou um “golpe de sorte”, mas sim o resultado direto de planeamento a longo prazo e do impacto cumulativo de políticas implementadas ao longo de várias décadas.

Tudo começou com a abordagem “Visão Zero“.

Este conceito nasceu na Suécia, onde foi formalmente adotado pelo parlamento em 1997. Na sua essência, afirma que “nunca pode ser eticamente aceitável que pessoas sejam mortas ou gravemente feridas quando se deslocam no sistema de transporte rodoviário.”

Por exemplo, sempre que há a morte de um peão por “atravessamento irregular“, o Departamento de Transportes não deve simplesmente atribuir a culpa ao peão imprudente.

Os planeadores urbanos têm a obrigação de avaliar que causas levaram a esta situação. A distância entre passadeiras é demasiado grande? A iluminação é má ou o limite de velocidade muito alto?

É difícil no início, e a abordagem foi inicialmente ridicularizada por alguns como irrealista. Mas pode ser conseguida, e de formas ligeiramente diferentes.

Oslo, a capital da Noruega, seguiu uma estratégia de segurança rodoviária com o objetivo explícito de reduzir o domínio dos carros.

Tal como Helsínquia, Oslo conseguiu o marco notável de zero mortes de peões e ciclistas em 2019. Este sucesso foi impulsionado por uma escolha política clara de tornar a condução na cidade mais difícil, mais cara e menos conveniente.

A cidade removeu sistematicamente lugares de estacionamento na rua, recuperando esse espaço para uso público. As portagens foram aumentadas, e esse  dinheiro foi investido nos transportes públicos. Oslo reduziu também os limites de velocidade em toda a cidade.

Estocolmo, por sua vez, criou vias principais apenas para peões e bicicletas. A cidade liderou uma campanha para identificar e corrigir falhas pequenas mas críticas na rede pedonal, como caminhos lamacentos ou ligações em falta, frequentemente baseada em contribuições diretas dos cidadãos.

Isto pode ser replicado?

O sucesso de Helsínquia, Oslo e outras cidades não é místico nem difícil de perceber. Na verdade, é um plano claro e replicável para qualquer área urbana comprometida em eliminar mortes no trânsito.

Mas conseguir um nível similar de segurança requer uma mudança fundamental de filosofia, apoiada por um conjunto de estratégias comprovadas e baseadas em dados estatísticos.

Primeiro, as cidades bem-sucedidas começaram com um compromisso declarado de eliminar mortes no trânsito. Esta retórica de cima para baixo envia um sinal útil e encoraja as partes interessadas a trabalhar em conjunto — desde que não seja apenas conversa.

Poderia ser feito em Lisboa ou qualquer outra cidade do país?

A mudança mais impactante é sempre o limite de velocidade. É isso que salva vidas, mas muitos condutores portugueses arrepiam-se só de pensar em conduzir a 30 km/h num via urbana.

Em 2022, o presidente da Câmara de Lisboa, Carlos Moedas, considerou que a oposição na autarquia “demonstrou soberba” com a aprovação de uma proposta para reduzir em 10 km/h a velocidade máxima do trânsito nas vias de 3º, 4º e 5º nível.

Na altura, a CNN Portugal foi dar uma volta por Lisboa a 30 km/h com Patrícia Gonçalves, a vereadora do Livre que tinha proposto a redução destes limites — num exercício de contabilidade das buzinadelas e das vezes em que o veículo foi ultrapassado por bicicletas e trotinetes.

Um mês mais tarde, Moedas defendeu uma “forte fiscalização às velocidades” como alternativa à redução dos limites de velocidade em 10 km/h.

A “inenarrável ideia” de conduzir a 30 km/h pelas ruas da capital recolheu na altura uma enorme onda de contestação nas redes sociais — com comentários cheios de impropérios, a versão online das buzinadelas. Naturalmente, para qualquer condutor, circular pela cidade a 30 km/h é inconcebível e intolerável. Enerva.

É um ponto de vista, e é uma opção — que custa 8 ou 10 vidas por ano em Lisboa, mais 2 ou 3 na cidade do Porto.

Os nórdicos têm um ponto de vista bastante diferente: o que é intolerável é que “pessoas sejam mortas ou gravemente feridas quando se deslocam no sistema de transporte rodoviário”. E tomaram uma opção diferente.

Armando Batista, ZAP //

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