Entre 2006 e 2012 foram distribuídos setenta e seis mil milhões de comprimidos de duas substâncias opióides, a oxicodona e a di-hidrocodeína. As mais de 70 mil registadas em 2017 representam um aumento para o dobro em relação a uma dúzia de anos antes.
Estes são dois dos dados revelados um artigo publicado na quarta-feira no Washington Post, citado pelo Expresso. O artigo baseia-se numa base de dados até agora secreta, conhecida por ARCOS (Automation of Reports and Consolidated Order System), mantida pela agência a quem compete lutar contra o tráfico e abuso de drogas nos Estados Unidos (EUA), a Drug Enforcement Administration (DEA).
O Washington Post e o West Virginia, um grupo de media sediado em Charleston, precisaram de travar uma batalha judicial que durou um ano para conseguirem ter acesso à informação.
A oposição não vinha só da indústria mas, também, da DEA e do Departamento de Justiça, que alegavam que tornar públicos os dados podia pôr em causa investigações em curso. No final, um juiz entendeu que o interesse público na divulgação se sobrepunha.
A crise dos opióides nos EUA, que atingiu proporções catastróficas ao longo da última década e meia, foi em grande parte induzida pelo abuso de receitas dos medicamentos legais analgésicos conhecidos como opióides.
Milhões de pessoas que começam por tomar estes medicamentos para combater alguma dor, ainda que não crónica, acabam por ficar viciadas. Em muitos casos, passam para drogas ilegais como a heroína. Mais recentemente, é um opióde sintético, o fentanil, que está a assolar muitas comunidades.
Um dos resultados de tudo isto foi o aumento acentuado do número de overdoses no país. As mais de 70 mil registadas em 2017 representam um aumento para o dobro em relação a uma dúzia de anos antes.
Nem todas, obviamente, são resultado do consumo excessivo de medicamentos legais, embora haja uma associação documentada entre estes e o uso de cocaína, por exemplo. Ao todo, entre 2006 e 2012, estima-se que umas cem mil overdoses tenham sido produzidas por medicamentos sujeitos a receita.
Um gigantesco processo em Cleveland
Há muito que se fala nas responsabilidades dos fabricantes e distribuidores de medicamentos, e já existem processos contra esses em vários tribunais do país. Em 2018, o estado de Massachussetts processou a empresa que produz o OxyContin, tido como a droga que deu o pontapé de saída para a crise. Na altura, indicou o Expresso, falou-se de “traficantes de droga em fatos Armani”.
Noutro processo, em Cleveland, no Ohio (EUA), quase duas mil cidades e condados de todo o país acusam duas dezenas de empresas de terem tido consciência do que se estava a passar e mesmo assim terem continuado a promover e vender agressivamente os seus produtos, ignorando as consequências trágicas em nome do lucro.
A base de dados agora tornada pública revela uma visão de conjunto daquilo que tem sido a atividade dessas empresas nos EUA. Registando minuciosamente a distribuição e venda de medicamentos em todo o país, permite apreciar não só as quantidades dessas substâncias que foram consumidas, como a própria distribuição geográfica, por exemplo.
Não surpreende, por exemplo, que muitas zonas rurais e economicamente deprimidas sejam locais privilegiados da crise, para mais num país onde a ausência de um sistema de saúde de acesso universal leva muitas vezes a recorrer aos medicamentos como alternativa a tratamentos mais dispendiosos que os cidadãos não têm meios para custear.
O artigo contém outras informações que vão dar matéria para investigações subsequentes. Por exemplo, que apenas seis companhias – McKesson Corp, Walgreens, Cardinal Health, AmerisourceBergen, CVS e Walmart – distribuíram 75% de todos os comprimidos vendidos, ou que apenas três fabricantes – SpecGx, Actavis Pharma e Par Pharmaceutical – produziram 88% de todos os opióides.
“DEA era a única entidade que tinha toda a informação”
Para as empresas da área farmacêutica, tanto fabricantes como distribuidores, o artigo publicado na quarta-feira é uma má noticia, e várias foram rápidas a responder, descartando responsabilidades, relatou o Expresso.
Um grupo representativo dos distribuidores, a Healthcare Distribution Alliance, emitiu uma declaração que sintetiza o essencial dos argumentos: “A ARCOS mostra que os distribuidores reportaram sempre à DEA as vendas de medicamentos opióides, juntamente com a quantidade da encomenda e a identidade da farmácia que as recebia. Os distribuidores só recentemente tiveram acesso a informações sobre a quantidade total de medicamentos opióides que uma farmácia específica recebia de todos os distribuidores”.
E acrescentou: “A DEA era a única entidade que tinha toda essa informação à mão e podia tê-la usado para monitorizar consistentemente o fornecimento de opióides e, quando apropriado, ser ativa a identificar os maus agentes”.
“Ao contrário da DEA, os distribuidores não têm autoridade para impedir os médicos de passarem receitas, nem podem agir unilateralmente para retirar à farmácias a capacidade de distribuir medicação”, concluiu a nota informativa.