Joe Biden quer impor-se como uma voz importante no combate às alterações climáticas depois da saída de Trump do Acordo de Paris, mas alguns aspectos da sua agenda são ainda mais nocivos para o clima do que as do seu antecessor. O seu grande pacote social também continua preso no Congresso.
Os Estados Unidos voltaram à coligação High Ambition das Nações Unidos, o grupo de países que se comprometeu a garantir que a temperatura média global não vai subir mais do que 1.5ºC — um dos principais objectivos do Acordo de Paris.
Este grupo vai também apelar esta terça-feira a que os governos aumentem os seus esforços para cortar nas emissões de gases com efeito de estufa e também na dependência no carvão para que o objectivo seja alcançado. A nível dos países ricos e também mais poluidores, a coligação quer que se dobrem os financiamentos dados aos países mais pobres para que estes se adaptem às consequências da crise climática. O fim dos subsídios à indústria de combustíveis fósseis também é uma exigência.
O regresso dos EUA enquanto maior economia mundial e segundo maior poluidor à coligação vem dar mais força às tentativas de se focar a Cimeira Climática Cop26 da ONU, que está a reunir mais de 120 líderes mundiais em Glasgow, na Escócia, e é a maior deste género desde a assinatura dos Acordos de Paris em 2015, na limitação do aumento da temperatura, que tem sido um dos pontos mais difíceis nas negociações.
Um responsável norte-americano afirmou que a coligação High Ambition foi “instrumental em Paris na garantia de que essa alta ambição fosse escrita no Acordo de Paris e vai ser instrumental em Glasgow para garantir que se concretiza.
A High Ambition nasceu na preparação para o Acordo de Paris pela mão do chefe para as negociações das Ilhas Marshall, Tony de Brum. Apesar do pequeno tamanho do país da Oceânia, com apenas 60 mil habitantes, o líder teve uma grande influência nas conversas, passando meses a reunir-se com líderes de países desenvolvidos e em desenvolvimento para angariar mais apoiantes da ideia.
As Ilhas Marshall são um dos países que mais tem a perder com as alterações climáticas, com a sua existência ameaçada nos próximos 100 anos devido ao aumento do nível das águas do mar.
“A coligação High Ambition criou o critério para aquilo que tem de acontecer nesta cimeira: entrar no caminho para se limitar o aumento da temperatura até 1.5ºC com acções reais e melhorados, como a descontinuação do uso do carvão, uma adaptação às mudanças no mar, com pelo menos o dobro dos actuais níveis de financiamento para as adaptações e com a garantia de que todos temos os recursos para lidar com esta crise, incluindo com as perdas e danos que já estamos a viver hoje”, afirma Tina Stege, a embaixadora para o clima das Ilhas Marshall e sobrinha de De Brum, que faleceu em 2017, citada pelo The Guardian.
Depois de se saber que apenas um país está a cumprir as metas do Acordo de Paris, há vários receios de que o objectivo do 1.5º não seja cumprido a tempo, apesar de ser um imperativo apoiado pela ciência. Mesmo assim, este objectivo implica um corte nas emissões de pelo menos 45% até 2030, em comparação com os números de 2010. Um aumento da temperatura além deste valor amplificará ainda mais os efeitos das alterações climáticas, com o derretimento dos glaciares e o aumento do nível das águas do mar a inundar completamente países insulares, a maior frequência de fenómenos extremos como incêndios, furações ou inundações e a devastação da biodiversidade.
John Kerry, o embaixador dos EUA para o clima e ex-Secretário de Estado de Obama, afirmou que o objectivo traçado em Paris “baseou-se no trabalho duro da coligação High Ambition e nos pequenos países insulares e em desenvolvimento”. “Eles consideraram que era um imperativo — e graças a Deus que sim. A ciência agora acompanha esse facto, o Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas, a Agência Internacional Energética e outros já deixaram bem claro que é isto que precisamos de alcançar“, afirmou.
“Os Estados Unidos querem liderar através do exemplo”
No discurso na cimeira, Joe Biden tentou voltar a afirmar os EUA como um dos líderes na linha da frente no combate às alterações climáticas, depois da administração Trump ter abandonado o Acordo de Paris há cerca de um ano e promovido teorias negacionistas. A Casa Branca voltou a integrar o compromisso em Fevereiro deste ano.
O presidente norte-americano alertou para “a ameaça existencial para a existência humana como a conhecemos” e apelou a que outros líderes levem a sério a mudança profunda que tem de acontecer na produção de energia, numa Cop26 que tem de agir como “um pontapé de saída para uma década de ambição e inovação para preservar os nosso futuro partilhado”.
“Vamos encontrar-nos com os olhos da História sobre nós. Vamos fazer o que é necessário? Ou vamos condenar as futuras gerações a sofrer?“, questionou Biden. “Vamos demonstrar ao mundo que os Estados Unidos não estão só de volta à mesa de discussão mas esperemos que a liderar com o poder do nosso exemplo. Sei que esse não tem sido o caso, e é por isso que a minha administração está a trabalhar ainda mais para mostrar o nosso compromisso através de acções e não palavras”, acrescentou, numa alfinetada a Donald Trump.
Ainda antes de chegar a Glasgow, Biden já tinha deixado críticas à política climática — ou, melhor dizendo, à falta dela — do seu antecessor. “Acho que não devia pedir desculpa, mas peço desculpa pelo facto dos Estados Unidos, a última administração, ter saído do Acordo de Paris e ter-nos colocado numa desvantagem”, condenou. A Rússia e a China, outros dois grandes poluidores, também não escaparam à mira de Biden, com o chefe de Estado dos EUA a mostrar-se “desapontado” com a falta de acção dos dois países. Recorde-se que nem Vladimir Putin nem Xi Jinping estão presentes na cimeira.
Na sua mensagem na Cop26, Biden avisou que neste momento “estamos a falhar” e que “não há tempo para indecisões ou discussões entre nós”. “Este é o desafio das nossas vidas colectivas, uma ameaça existencial para a existência humana como a conhecemos e o custo da nossa inacção aumenta a cada dia em que a adiamos”, rematou, lembrando a “responsabilidade esmagadora” dos grandes poluidores, como os EUA, na ajuda a países mais pequenos.
Biden quer também reconstruir a credibilidade verde norte-americana com o anúncio de um plano para controlar a emissão de metano, que a administração considera a forma mais potente de combater a crise climática a curto prazo. Esta terça-feira, o líder dos EUA vai revelar que uma aliança de 90 países, incluindo o Brasil, vai impor novas medidas para cortar as emissões globais de metano em 30% até ao final da década.
O compromisso, conhecido como Global Methane Pledge, inclui dois terços da economia global e metade dos 30 maiores emissores de metano. No entanto, os pesos pesados China, Índia e Rússia não integram o grupo. A intenção da administração da Casa Branca já tinha sido anunciada em Setembro, mas as autoridades americanas continuaram a tentar angariar mais países para a aliança.
Com uma agenda climática empatada dentro do seu próprio partido, Biden pode também respirar de alívio sobre algumas das mudanças nas regulações que a aliança exige, já que não precisam de ser aprovadas pelo Congresso. Os EUA dizem estar a trabalhar com a União Europeia sobre quais os incentivos a dar e as regulações a aplicar.
O foco vai cair sobre as indústrias do petróleo e gás, que são responsáveis por 30% das emissões de metano nos EUA, com a Casa Branca a esperar que 75% de todas as emissões no país sejam afectadas. A regra que regulava a detecção de vazamentos e reparações na indústria petrolífera, que foi revogada por Trump, também vai voltar, e começar a ser aplicada pela primeira vez à produção de gás.
Outro dos trunfos de Joe Biden nesta cimeira é uma declaração conjunta que será adoptada por mais de cem países onde se situam 85% das florestas mundiais, entre as quais a floresta boreal do Canadá, a floresta amazónica ou ainda a floresta tropical da bacia do Congo.
Os líderes mundiais vão comprometer-se a deter a desflorestação até 2030 para combater as alterações climáticas, anunciou o Governo britânico. A iniciativa, que beneficiará de um financiamento público e privado de 19,2 mil milhões de dólares (16,5 mil milhões de euros), é essencial para alcançar o objectivo de limitar o aquecimento global a 1,5 graus Celsius acima dos valores médios da era pré-industrial, segundo o primeiro-ministro britânico, Boris Johnson.
“Esses formidáveis ecossistemas abundantes – essas catedrais da natureza – são os pulmões do nosso planeta”, estão no centro da vida de comunidades ao absorver uma grande parte do carbono libertado na atmosfera, dirá Boris Johnson no seu discurso, de acordo com excertos divulgados pelo seu gabinete. Com o compromisso, que está a ser classificado como “sem precedentes” e que pretende nomeadamente restaurar terras degradadas, combater incêndios e apoiar as comunidades indígenas, os países terão, para o chefe do governo britânico, “a oportunidade de terminar a longa história de uma humanidade conquistadora da natureza tornando-se antes guardiães”.
Entre os signatários do compromisso estão o Brasil e a Rússia, países acusados da aceleração da desflorestação nos seus territórios, bem como os Estados Unidos, a China, a Austrália e a França. Numa das sessões desta terça-feira da 26.ª Conferência das Partes da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Alterações Climáticas (COP 26), os dirigentes de mais de 30 instituições financeiras irão também comprometer-se a não investir mais em actividades ligadas à desflorestação, segundo o comunicado de Downing Street. Actualmente, quase um quarto (23%) das emissões mundiais de gases com efeito de estufa provém de actividades como a agricultura e a indústria madeireira.
Biden deu mais autorizações para explorações fósseis em seis meses do que Trump num ano
Mas apesar destes gestos promissores, muitos activistas consideram que estas promessas não chegam. A Greenpeace, por exemplo, refere que o objectivo de 2030 para o compromisso sobre a desflorestação é demasiado distante no tempo e que dá, assim ‘luz verde’ a “mais uma década de desflorestação”. “Os povos indígenas exigem que 80% da floresta amazónica seja protegida até 2025, e eles têm razão, é o que é preciso fazer”, insistiu Carolina Pasquali, responsável da Greenpeace no Brasil.
O problema da destruição de territórios indígenas para a agricultura ou exploração petrolífera não é exclusivo do Brasil. Nos EUA, houve até marchas em Washington no primeiro feriado oficial dedicado aos povos indígenas contra a administração Biden e as promessas quebradas sobre o combate às alterações climáticas e protecções das tribos afectadas.
No seu primeiro dia enquanto presidente, o chefe de Estado rasgou a autorização para o polémico oleoduto Keystone, um enorme projecto de oito mil milhões de dólares que levaria o crude canadiano até às refinarias na costa do Golfo. Mas há outros projectos de exploração petrolífera onde Biden não tem sido tão assertivo.
Um dos principais pontos de origem das críticas é a construção do oleoduto da gigante petrolífera canadiana Enbridge, que teve um reforço de nove mil milhões de dólares no investimento. O oleoduto vai ligar Alberta, no Canadá, ao Wisconsin, nos EUA — um estado onde vivem mais de 80 mil nativos e 11 tribos reconhecidas a nível federal.
Muitos activistas esperavam também que Biden, que fez o combate à emergência climática um dos principais focos da sua campanha eleitoral, revertesse a sua posição nas autorizações para o projecto Linha 3, uma parte do oleoduto da Enbridge, e também para uma outra construção —Dakota Access Pipeline (DAPL) — que levaria petróleo deste a Dakota do Norte até ao sul do país. No entanto, Biden não interveio, deixando as decisões nas mãos dos tribunais.
“A credibilidade climática de Biden está em jogo. Acho que nesta fase, é muito claro que apenas o governo federal pode fazer o que tem de ser feito sobre a Linha 3, DAPL e outros projectos também”, criticou Bill Mckibben, co-fundador do grupo de activistas 350.org, citado pelo Financial Times.
Já em Glasgow, também se ouviram muitas vozes críticas a insurgirem-se contra a administração norte-americana à porta da cimeira, já que o seu pacote de medidas sociais Build Back Better, que inclui a maior parte da sua agenda climática, continua empatado no Congresso. Muitas das medidas mais importantes e significativas também tiveram de cair, devido às exigências do Senador Democrata Joe Manchin, que tem grandes ligações à indústria petrolífera.
Segundo escreve o The Guardian, Manchin já recebeu mais dinheiro em doações da indústria de petróleo e gás do que qualquer outro Senador, tendo conseguido mais do dobro do segundo maior beneficiário. O Senador da Virgínia Ocidental também é o que mais dinheiro recebeu do sector das minas de carvão e dos operadores de oleodutos e tem usado o seu voto favorável como moeda de troca para que muitas das medidas que prejudicam estas indústrias, como o maior investimento nas energias renováveis, caiam.
“Biden está em Glasgow de mãos vazias, com nada mais do que palavras no papel. É humilhante e insuficiente dado o momento em que estamos”, condenou Varshini Prakash, directora do movimento progressista Sunrise, que procura pressionar os líderes políticos a agir perante a crise climática.
Nos primeiros seis meses da administração Biden foram também emitidas mais 2500 autorizações para a exploração de gás e petróleo, numa quebra de uma promessa eleitoral, como revelou o NPR. Trump demorou um ano para chegar a este valor e as acusações de hipocrisia a Biden não tardaram, já que o actual presidente não tem poupado nas críticas ao seu antecessor.
O líder da Rede Ambiental Indígena, Tom Goldtooth, afirmou que está em Glasgow para “denunciar a conferência dos poluidores“. “Não é uma conferência climática — foi apropriada por interesses corporativos. Se nós, pessoas indígenas, não viermos, estamos no menu. Estamos aqui para defender os nossos povos, queremos viver”, declarou.
A activista sueca Greta Thunberg também marcou presença nos protestos à porta da Cop26. “Esta Cop26 até agora é como todas as outras Cops que não nos levaram a lado nenhum. Dentro da Cop ali estão só políticos e pessoas com poder a fingir que levam o nosso futuro a sério“, criticou a fundadora do movimento de greves de estudantes pelo combate às alterações climáticas.
“Estão a fingir que levam a sério a presença de pessoas que ja estão a ser seriamente afectadas hoje pela crise climática. A mudança não vai partir dali de dentro — aquilo não é liderança. Nós dizemos basta de “blá blá blá”. Chega da exploração de pessoas e da natureza do planeta”, rematou a activista de 18 anos.
Adriana Peixoto, ZAP // LUSA
É tudo uma questão de €$€$€$!
Será que para se ser político, terá que se ser obrigatoriamente mentiroso?