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Como um inseto esmagado pintou a Europa de vermelho (e se tornou um símbolo de poder)

Georges Jansoone / Wikimedia Commons

Os “Painéis de S. Vicente de Fora”, do português Nuno Gonçalves, estão repletos de vermelho vivo

Da cor do pecado à expressão artística da riqueza (passando por um cheiro nauseabundo), o vermelho lançou a Espanha para a hegemonia. Pode ser rojo, rouge ou rosso, mas em português faz mais sentido — e encarnado é uma palavra a repensar.

Desde os tempos do Antigo Testamento que o vermelho é uma cor polémica. Na religião cristã, é a cor proibida — e não é à toa que se usa para riscar, proibir, sinalizar um STOP, um semáforo, um erro, uma lista negativa. Chama a atenção, avisa, alerta, proíbe.

Desde cedo, portanto, a procura por esta cor fascinante e atrativa foi um desafio. O roxo, por exemplo, cor igualmente hipnotizante, era já uma cor luxuosa, segundo explica a BBC, produzida pelo caracol murex, esmagado e transformado em corante na Europa clássica. Mas o vermelho continuava difícil de obter.

Para pintar com esta cor, os europeus importavam uma estranha mistura do Império Otomano, o chamado “vermelho Turquia”. Mas a mistela de cor pouco intensa não primava pela qualidade…. a começar pelo cheiro. Segundo conta Amy Butler Greenfield no livro “A Perfect Red”, o batido de cor era comporto por estrume de vaca, azeite rançoso e sangue de novilho. Esbatido numa paleta, mas muito vivo nas narinas de quem o usava.

Mas, a vários milhares de quilómetros de nós, já uma civilização dominava a arte das tintas bem melhor do que nós. A cor vermelha era já usada com grande destreza pelos mesoamericanos do México: para tingir roupas, pintar murais e até… para servir de medicamento. Faziam desde cerca de 2000 a.C..

O segredo para esta vibrante coloração só foi descoberto, no entanto, vários séculos depois, com a chegada dos espanhóis às Américas no século XVI: a chave era um pequeno e estranho inseto chamado cochonilha, esmagado e transformado num magnífico vermelho.

As aldeias periféricas pagavam aos governantes astecas em quilos de cochonilha e rolos de tecido vermelho-sangue — esta cor estava por todo o lado. Mas inicialmente não convenceu o conquistador Hernán Cortés.

No entanto, o rei espanhol viu na cochonilha uma oportunidade para manter o seu domínio no país, equilibrar as balanças financeiras do reino e assegurar os cofres da coroa. Foi então que se interessou pelo vermelho, ou rojo.

A especialista em têxtil Quetzalina Sanchez explica À BBC que “Através de leis e decretos absurdos, [os espanhóis] monopolizaram o comércio” desta cor. “Obrigavam os índios a produzir o máximo possível.” Os espanhóis “lucravam imenso como intermediários”, explorando os indígenas locais.

Depressa a Europa se deixou fascinar pela cor tão viva e pela eficácia da cochonilha, e começou a adotá-la nos quadros renascentistas, que hoje reconhecemos. Estava restaurada a hegemonia espanhola — e abria-se caminho a uma série de célebres pinturas repletas de vermelho: o símbolo do poder, da nobreza, da riqueza.

Mas até os modernistas como Paul Gauguin, Auguste Renoir e Vincent van Gogh usaram a cochonilha para os seus vivos quadros.

No México, explica a investigadora, “a cor continua a ser associada à magia ancestral e protege aqueles que usam roupas tingidas com cochonilha”.

Vermelho ou encarnado? Escolha o inseto

Em Portugal, usamos uma nomenclatura bem diferente do que os nossos “irmãos” de linguagem, ou seja, das outras línguas derivadas do latim. Em espanhol, o rojo, em italiano, o rosso, que muitos por cá associam ao vinho, e o rouge francês, que mais podemos associar à maquilhagem.

De onde vem, então o vermelho? Segundo explica na RTP a jornalista Mafalda Lopes da Costa, a nossa palavra deriva do latim “vermiculus”, que significa “pequeno verme”, ou “vermezinho”. Logo se vê a relação entre o verme da cochonilha e o vermelho — nasceu de um verme.

E o encarnado? Esse terá surgido da prática — segundo os dicionários, “encarnado” significa algo que é da cor da carne viva. Ora, a nomenclatura preferida dos lisboetas tem origem no sangue, onde, muito antes da produção deste verme, já se via o vermelho vivo desde os primórdios da humanidade.

Se preferir a civilização e a arte, “vermelho” será melhor opção que “encarnado”. O norte fica com a vitória — mas o Benfica com a cor.

Carolina Bastos Pereira, ZAP //

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