Muitos portugueses têm caído na armadilha do “filho”. Mas confirmar uma transferência bancária é como enviar uma SMS, explica especialista.
Seria uma terça-feira de Novembro como as outras para Adolfo – será tratado assim neste artigo.
Mas, ainda de manhã, recebeu uma mensagem no WhatsApp: “Pai, guarda o meu novo contacto. Podes apagar o outro, está bem?”.
Adolfo respondeu afirmativamente. A conversa por escrito continuou e, logo a seguir, o seu “filho” pediu para o pai realizar uma transferência para outra pessoa, por ele. Porque tinha a conta no banco bloqueada durante 24 horas.
O pai transferiu o dinheiro e, cerca de uma hora depois, o “filho” pediu para fazer nova transferência. O pai acedeu novamente.
Ainda telefonou (para o número novo) mas deu sinal de número indisponível.
Tudo junto: 2 mil euros, em menos de duas horas.
Mas o “filho” não era mesmo o seu filho. Adolfo tinha acabado de ser mais uma vítima das burlas no WhatsApp que se têm acumulado ao longo dos últimos meses, em Portugal.
Neste sistema, os criminosos escrevem para um número à sorte na plataforma, alegam que são o filho ou filha, dizem que mudaram de número de telemóvel e – se a outra pessoa acreditar – logo a seguir pedem dinheiro. O pai ou mãe, pensando que está a ajudar o filho, não hesita.
Quando falou com o filho (verdadeiro), Adolfo foi imediatamente para uma esquadra da Polícia de Segurança Pública. O comandante local comentou que o primeiro caso semelhante foi apresentado naquela esquadra “há meses” e que, desde aí, têm-se acumulado os processos praticamente iguais.
Quase em simultâneo – e porque já era noite – ligou para a linha de apoio do Santander, o banco onde tem conta. O banco, pelo menos ao telefone, só poderia receber pedidos de estorno (devolução), o cliente pagaria 25 euros mais imposto por cada pedido e nada estava garantido: só iria receber o dinheiro se o beneficiário (burlão) aceitasse devolver.
Mas ficou a indicação para o cliente tentar algo mais na manhã seguinte, num balcão do Santander.
Foi o que Adolfo fez. Já com as participações (uma por cada transferência) redigidas na PSP na mão. Mas, mal começou a conversa, ficou claro: o banco nada podia fazer. “O senhor ontem apresentou queixa onde deveria apresentar: na polícia. O banco não é polícia“.
Resposta de um banco
O ZAP contactou seis dos maiores bancos em Portugal – Caixa Geral de Depósitos, BCP, Montepio, BPI, Novo Banco e o próprio Santander – para tentar perceber melhor estes processos. Tentar perceber o que os bancos podem/conseguem fazer depois do crime, depois de a transferência ter sido concretizada.
Só o BCP respondeu. O banco não comenta “procedimentos internos” mas reforça os alertas sobre fraudes junto dos clientes e que, depois da burla, “inicia tempestivamente as diligências necessárias para minimizar o impacto nos clientes”.
Contactámos então três pessoas que estão por dentro de assuntos financeiros, incluindo duas que acumulam 20 anos ao serviço de bancos portugueses. Para avaliar a esperança do cliente na recuperação do dinheiro.
O exemplo da bicicleta
Um especialista começou logo por avisar que, ao balcão, um bancário não tem poderes informáticos muito amplos.
E, continuando na parte da limitação, ter uma participação da polícia não é sinónimo obrigatório de que tudo que esteja ali relatado seja verdadeiro; o relato do cliente pode ser falso ou estar adulterado.
Neste contexto, outro alerta que nos chegou: os bancos poderiam ser enganados…pelo cliente.
Exemplo que saiu da imaginação: a Bruna combina vender uma bicicleta ao Carlos – mas só entrega a bicicleta quando o Carlos mostrar o comprovativo do pagamento; o Carlos paga, envia o comprovativo, mas vai “a correr” ao banco pedir para cancelar a transferência. Inventa uma estória ou diz que se enganou. Se o banco devolver o dinheiro, o Carlos fica com o dinheiro e com a bicicleta.
Os bancos podem já ter passado por casos semelhantes e, desde então, precisam de se “resguardar”.
Transferência ou estorno…complicado
Lê-se por aí que, se o cliente pedir o cancelamento da transferência no próprio dia até às 15h, é possível rever o dinheiro.
Mas não é bem assim, explica outro bancário. O sistema de transferências bancárias SWIFT, proporcionado pelo Banco Central Europeu (BCE), compensa saldos entre bancos (inscritos no BCE) à medida que são efectuadas as transferências. O banco A faz transferência para o banco B e, em simultâneo, o BCE compensa o banco A pelo dinheiro que saiu.
Uma comparação com telemóveis resume o momento de uma transferência bancária. É como enviar uma SMS: a partir do segundo em que se carrega no “enviar”, no segundo seguinte a mensagem está do lado de lá, nada há a fazer.
Em Portugal, e porque a legislação permite, numa transferência bancária o banco pode demorar 48 horas a disponibilizar o saldo – o que não significa que o banco não tenha lá o dinheiro ou que não tenha feito logo a transferência. Mas normalmente o banco não processa logo a transferência, provavelmente espera pelo momento limite.
E depois entra um motivo crucial para a frustração do cliente burlado, no momento de pedir o cancelamento da transferência ou a devolução do dinheiro: “Este método SWIFT do BCE é fabuloso, é uma obra de arte informática, mas foi também uma forma de eliminar força de trabalho. Não há humanos. São praticamente zero humanos a fazer, a olhar, a ver o que está pronto ou não. Ou seja, para um banco é muito complicado reverter uma transferência“.
Papel passivo dos bancos
Há ferramentas para tentar pedir a devolução do dinheiro. Primeiro, como o Santander disse a Adolfo, implica a boa vontade da pessoa que recebe o dinheiro, que tem de aceitar fazer o estorno – no caso de um crime, é pouco provável.
Se o beneficiário não aceitar, o passo seguinte é processo judicial. E mesmo aí nada está garantido. Por exemplo, o dinheiro entregue a um construtor, que nunca construiu a casa: o banco não vai devolver o dinheiro, mesmo que a conta tenha lá o dinheiro em causa. Só a nível judicial o processo pode avançar. E, caso o construtor esteja falido, não tenha bens, provavelmente a vítima nunca mais vai recuperar o dinheiro.
“O banco tem um papel muito passivo nestes processos”, resume o especialista.
Rasto criminoso e o que (não) se sabe
Neste caso, Adolfo fez duas transferências para números de IBAN portugueses. Assim, as autoridades podem tentar identificar e localizar o criminoso, ou os criminosos.
Aliás, já surgiram casos em que os burlões foram detidos em Portugal, precisamente porque os dados que forneceu ajudou a Polícia Judiciária.
De resto, os bancos têm formas de perceber para onde foi o dinheiro, têm registos internacionais, e se um burlão com currículo criminoso abre conta, surge logo um alerta. Através da identificação da pessoa, através dos movimentos, “há mil formas, há equipas especializadas” em localizar estas pessoas – caso não tenham criado a sua conta bancária com documentos falsos.
Por fim, uma nota para os próximos clientes enganados – e vão surgir mais clientes enganados – neste sistema no WhatsApp: muitos bancários não têm conhecimento de tudo isto, deste backoffice relacionado com SWIFT, transferências, BCE… Se não ficar satisfeito com as justificações que ouvir ao balcão, pode ser mesmo porque o bancário não sabe mais do que o que já explicou. É normal um bancário não conhecer esses contextos a fundo.
Mas este esquema através do whatsapp continua. Ainda ontem recebi uma mensagem exactamente com esquema aqui referido. Penso que os bancos deveriam poder fazer alguma coisa. Provavelmente podem mas não estão para isso.
Defendam-se e confirmem com o “filho” a veracidade do pedido.
Infelizmente não é bem assim. Alguém dá ordem de transferência e a transferência é efetuada. Como é que no banco podem saber se foi uma transferência correta ou de burla? E mesmo que deem importância à reclamação, como podem saber se é o próprio reclamante que está a fazer a burla? O melhor é mesmo a “vítima” ligar para o “filho”, pelo mesmo número que recebeu, a ver quem atende e assim saber se é verdade ou não. Assim é capaz de reconhecer se é mesmo o filho.
Todos ganham com a jogada. Até os bancos… daí nada fazerem para acabar com estas coisas.
E as operadoras de telemoveis… Até permitem haver pagamentos para numeros que se registam como de empresas que realmente existem, dando credibilidade à burla!
Estranhamente ainda ninguém mencioniou que um dos pontos contra as cripto moedas é a impossibilidade de reverter transações. Afinal os bancos são iguais!
Noticias ZAP será Historia e não estoria. No texto “Carlos paga, envia o comprovativo, mas vai “a correr” ao banco pedir para cancelar a transferência. Inventa uma estória ou diz que se enganou”
Caro leitor,
Obrigado pelo reparo. No entanto, estória está absolutamente correto.
Também poderia ser história, seu sinónimo.
Mas nunca poderia ser História.
Peço desculpa então
Caro leitor,
Não tem que pedir. Obrigado pelo seu reparo; na maior parte dos casos, são os reparos dos leitores que nos apontam falhas e nos permitem corrigir erros.
Já agora, de todas as pessoas que recebem essa mensagem no telemovel, quantos se incomodaram a ir apresentar queixa?