No dia em que o Presidente da República começa a receber os partidos com assento parlamentar, discute-se qual a postura que vai ter no que resta do seu mandato, período em que terá António Costa em São Bento.
Quando Marcelo Rebelo de Sousa anunciou, mesmo antes da votação do Orçamento do Estado para 2022, que, caso este não fosse aprovado, avançaria com a dissolução da Assembleia da República, fazendo uso da chamada ‘bomba atómica’ dos presidentes.
Choveram então críticas dos partidos à esquerda — que argumentavam que deveria ser dado mais espaço para a discussão, negociação e, em última análise, à apresentação de um segundo Orçamento —, mas também de outros quadrantes da sociedade, que consideravam que das eleições não iria sair uma solução mais clara do que a que existia.
O Presidente da República não se deixou levar, talvez partindo dos exemplos anteriores em que todas as dissoluções, e consequentes eleições, trouxeram à política portuguesa mais estabilidade e clareza.
Nunca se saberá ao certo se Marcelo já antecipava tanta estabilidade como a que se perspetiva para os próximos quatro anos — ao longo dos dois mandatos, em Belém, terá sempre (em circunstâncias normais) como primeiro-ministro, em São Bento, António Costa — e um novo papel para si próprio: o de fiscalizador de um Governo assente numa maioria absoluta parlamentar.
Hoje, Marcelo Rebelo de Sousa começa a receber os partidos e o cenário que alguns previam de negociações entre PS e PSD caiu como um baralho de cartas às 20h de domingo, quando as primeiras projeções já indicavam uma maioria absoluta.
Tudo o que resta ao chefe de Estado, no imediato, é indigitar António Costa como primeiro-ministro.
A longo prazo, poderá especular-se sobre qual a estratégia de vigilância que vai seguir no futuro: se presente e vocal, como Mário Soares durante as maiorias de Cavaco Silva, ou se vai preferir permanecer com um papel mais secundário, com intervenções mais espaçadas.
Miguel Poiares Maduro, antigo ministro do Governo de Pedro Passos Coelho e professor de Ciência Política, afirmou ao Público que o resultado eleitoral que saiu das eleições legislativas de domingo liberta Marcelo do “ónus de ser o garante da estabilidade”, ao mesmo tempo que lhe dá “mais responsabilidade no escrutínio do executivo assente numa maioria absoluta”, de forma a evitar, por exemplo, uma “‘mexicanização’ do regime”.
O antigo ministro lembra ainda as palavras de António Costa, durante a campanha eleitoral, para descansar os portugueses sobre, na altura, uma possível maioria absoluta do PS, na qual usou a “vigilância” do Presidente da República como argumento. Aquela posição, aponta Poiares Maduro, agora “dificulta muito que não [se] preste atenção ao que Marcelo Rebelo de Sousa disser publicamente”.
Já António Costa Pinto, politólogo, considera que “sob o ponto de vista formal, perante uma maioria absoluta de um só partido, é evidente que os poderes do Presidente da República diminuem em relação ao Governo e ao Parlamento“.
Mesmo assim, não acredita que o futuro-próximo traga alterações nas relações entre Belém e São Bento. “Marcelo vai continuar a demarcar.se, ora a ensaiar um modelo informal de influência política, ora a utilizar o seu modelo habitual discursivo […] Marcelo vai ensaiar modelos de convergência entre o Governo e o principal partido da oposição”.