200 anos de luta contra o pipi sauvage: há quem veja poesia no xixi de Paris

Mbzt/Wikimedia Commons

Vespasienne em Paris, França.

Conhecida como a cidade-luz, Paris ostenta o título de capital do amor e do charme europeu. Mas por detrás da imagem romântica da Torre Eiffel iluminada, esconde-se um problema que há vários anos incomoda moradores, turistas e autoridades: o xixi na rua.

Urinar em espaços públicos é uma infração comum em grandes centros urbanos, mas em Paris o comportamento ganhou até um nome próprio: pipi sauvage, que numa tradução livre significa “xixi selvagem”.

Na capital francesa, não é raro circular pelas estações de metro e sentir um forte odor a urina nos corredores ou nas plataformas, ou caminhar pelas ruas à noite e surpreender alguém a aliviar-se num canto.

Mais de 200 anos de pipi sauvage

A cidade combate este hábito inconveniente dos seus habitantes há muitos anos. No século XIX, a polícia local instalou uma série de barras de ferro ou estruturas em formato de cone em esquinas e recantos das ruas de Paris, numa tentativa de criar obstáculos para quem se aliviava em edifícios, passeios ou ruas.

Algumas dessas estruturas ainda podem ser vistas hoje na cidade. Ficaram conhecidas como empêche-pipi.

Por volta de 1840, Claude-Philibert Barthelot, conde de Rambuteau e então presidente da Câmara de Paris, criou os primeiros urinóis modernos, no âmbito de uma campanha para tornar a cidade mais limpa. Os mictórios da época eram integrados em estruturas cilíndricas simples, usadas também para avisos e anúncios. Pelo formato, os parisienses apelidaram-nos de Colonnes Rambuteau (colunas Rambuteau).

Com o tempo, a cidade procurou dissociar a imagem do antigo autarca dos urinóis públicos e surgiu um novo nome: vespasienne. A palavra faz referência ao imperador romano Vespasiano, a quem é atribuída a criação de um imposto sobre a urina na Roma Antiga.

Mas rapidamente os urinóis tornaram-se locais de atividade sexual, sobretudo entre homens, devido à privacidade que proporcionavam.

Na década de 1960, a Assembleia Nacional francesa aprovou um projeto para retirar todos os vespasienne das ruas, de modo a impedir encontros sexuais. Só em 1981 Paris instalou o seu primeiro sanitário público unissexo. Hoje, cabines de uso público encontram-se espalhadas por toda a cidade.

Paris lidera, aliás, um ranking elaborado pelo jornal Le Monde sobre cidades europeias com mais casas de banho públicas por quilómetro quadrado: existem mais de 6 por km², muito acima da segunda classificada, Lyon, que tem 3 por km². Ainda assim, o problema persiste, segundo moradores e funcionários municipais que lidam com a questão diariamente.

O pessoal não tem muita vergonha. Nem sequer se preocupam em esconder-se atrás de um arbusto ou de uma árvore”, diz a brasileira Isabel Vigneron, que vive em Paris há um ano e meio e afirma ver frequentemente homens a urinar em público.

“E isto acontece mesmo havendo vários sanitários públicos na rua. Já vi pessoas a urinar nas paredes da cabine. Não dentro, mas do lado de fora.”

Autarquia responde com arte e tinta repelente, mas…

Nas últimas décadas, a Câmara Municipal recorreu a várias estratégias contra o pipi sauvage, como a aplicação de tintas repelentes de urina nos passeios e muros, a instalação de urinóis ecológicos e até intervenções artísticas.

Uma dessas iniciativas envolveu a colocação de murais em zonas escondidas de estações de comboio — locais onde a prática era comum — a partir de 2021. O objetivo era reduzir a sensação de privacidade que encorajava os infratores.

“Instalámos um sensor para perceber se o incentivo estava a funcionar. E, em média, reduzimos os jatos em 80%”, disse à BBC Isabelle Collin, especialista em Ciências Comportamentais e consultora da empresa pública ferroviária SNCF que participou no projeto, em entrevista gravada em 2023.

Noutra tentativa criativa, Paris testou urinóis ecológicos que prometiam transformar urina em adubo para flores. As estruturas vermelhas eram abastecidas com palha e concebidas para não libertarem odor. A medida ganhou atenção internacional em 2017, quando foi lançada, mas rapidamente gerou polémica.

Algumas pessoas argumentaram que os urinóis a céu aberto, instalados junto a monumentos e em frente ao rio Sena, por onde passam cruzeiros e outras embarcações, prejudicavam a imagem histórica da cidade e eram ofensivos. Alguns desses urinóis chegaram a ser vandalizados por ativistas feministas radicais, que acusaram o dispositivo de ser sexista e de excluir as mulheres.

A Câmara chegou também a apostar na criação de uma brigada especial contra incivilidades, ativa desde 2016. Para além de vigiar quem urina nas ruas, os agentes sancionam outros comportamentos censuráveis, como atirar lixo para o chão ou não recolher os dejetos dos cães.

Urinar em público constitui uma infração prevista no Código Penal francês e, em Paris, pode valer uma multa até 150 euros.

A poesia no pipi sauvage

Para muitos moradores, todas estas medidas pouco fizeram para dissuadir quem urina nas ruas de Paris. Já o parisiense Edwart Vignot começou a registar em fotografias as formas que via nas manchas deixadas por urina em paredes e passeios.

“É possível ver poesia nelas, porque criam uma forma, uma imagem. À primeira vista, parece abstrato, mas se olharmos com atenção, vemos animais, figuras… o universo”, disse à BBC.

O realizador partilha as suas fotografias nas redes sociais como forma de arte amadora. “É por isso que gosto de ser um caminhante em Paris e simplesmente observar.”

Mas afinal, por que razão os parisienses mantêm a “tradição” do pipi sauvage há tantos anos?

“Forma de marcar território”

O psicólogo comportamental Nicolas Fieulaine foi um dos consultores que ajudaram a Câmara de Paris a delinear a estratégia de instalação de murais artísticos nas estações ferroviárias. Em entrevista à BBC News em 2023, tentou explicar o fenómeno.

“No imaginário francês — e não tenho a certeza se isto acontece noutros países —, urinar em público é uma opção que parece estar sempre disponível, e isso não coloca em causa o caráter moral da pessoa”, diz, criticando também as soluções baseadas apenas em urinóis destinados ao público masculino.

“As pessoas urinam ali, depois noutro sítio, depois noutro… e isso transmite uma sensação de liberdade, de poder sobre os espaços públicos, que exclui as mulheres”, afirma. “É uma forma poderosa de apropriação. Urinar num lugar é uma maneira de marcar território.”

Para o especialista, a higiene tornou-se um tabu em França no século XIX, quando surgiu no país um movimento em prol da saúde pública. O higienismo, como foi chamado, defendia padrões sociais e de comportamento em nome da saúde.

Esse movimento ajudou a revolucionar várias cidades europeias, entre elas Paris, ao propor a construção de redes de esgotos, o abastecimento de água potável, a criação de parques e espaços públicos, além de incentivar práticas de higiene pessoal como o banho regular e a proibição do despejo de lixo nas ruas. Mas, segundo Fieulaine, essa filosofia também criou um sentimento de vergonha em relação a tudo o que fosse considerado sujo ou ligado a fluidos corporais.

“Foi assim que isto se tornou um pequeno tabu”, afirma. “Não enfrentamos estas coisas de frente. Quando expostos a outros tipos de sanitários, como os em que é preciso agachar-se, os franceses sentem repulsa porque isso os obriga a olhar para trás e a confrontar questões que eles próprios criaram.”

// BBC

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