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A raça é uma realidade biológica ou uma invenção humana?

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Ao contrário do que muitas pessoas (incluindo políticos proeminentes), a raça não é uma “realidade biológica”. Mas de que forma se desenvolveu o consenso científico sobre a raça?

Na recente enxurrada de ordens executivas de Donald Trump, uma delas alertava para “uma narrativa distorcida” sobre a raça “impulsionada pela ideologia e não pela verdade”.

O presidente dos EUA apontava como exemplo uma exposição em curso no Smithsonian American Art Museum intitulada “The Shape of Power: Stories of Race and American Sculpture”. A exposição apresenta mais de dois séculos de esculturas que mostram como a arte produziu e reproduziu atitudes e ideologias raciais.

A ordem executiva condena a exposição porque “promove o ponto de vista de que a raça não é uma realidade biológica, mas uma construção social, afirmando que ‘a raça é uma invenção humana'”.

A ordem executiva opõe-se a sentimentos como este: “Embora a genética de uma pessoa influencie as caraterísticas fenotípicas, e a raça auto-identificada possa ser influenciada pela aparência física, a raça em si é uma construção social.” Só que estas palavras não são do Smithsonian; são da Sociedade Americana de Genética Humana.

Os cientistas rejeitam a ideia de que a raça é biologicamente real.

A afirmação de que a raça é uma “realidade biológica” vai contra o conhecimento científico moderno.

Num artigo no The Conversation, John P. Jackson, professor de História e Filosofia da Ciência na Michigan State University, explica por que razão a afirmação de que a raça é uma “realidade biológica” vai contra o conhecimento científico moderno.

O historiador, especialista no estudo científico da raça, refere que ordem executiva de Trump coloca a “construção social” em oposição à “realidade biológica”, explicando que a raça foi inventada pelas pessoas e não pela natureza.

O que é a raça?

Na viragem do século XX, os cientistas acreditavam que os seres humanos podiam ser divididos em raças distintas com base em caraterísticas físicas. De acordo com esta ideia, um cientista podia identificar diferenças físicas em grupos de pessoas e, se essas diferenças fossem transmitidas às gerações seguintes, o cientista tinha identificado corretamente um “tipo” racial.

Os resultados deste método “tipológico” foram caóticos. Um Charles Darwin frustrado, em 1871, fez uma lista de 13 cientistas que identificaram entre duas e 63 raças, uma confusão que persistiu durante as seis décadas seguintes. Havia quase tantas classificações raciais como classificadores raciais, porque não havia dois cientistas que chegassem a acordo sobre quais as melhores caraterísticas físicas a medir, ou como as medir.

Um problema intratável com as classificações raciais era o facto de as diferenças nos traços físicos humanos serem diminutas, pelo que os cientistas tinham dificuldade em utilizá-las para diferenciar os grupos.

O pioneiro académico afro-americano W.E.B. Du Bois observou em 1906: “É impossível traçar uma linha de cor entre o negro e as outras raças… em todas as caraterísticas físicas a raça negra não pode ser distinguida por si própria“.

Mas os cientistas tentaram fazer essas classificações na mesma.

Num estudo antropológico de 1899, William Ripley classificou as pessoas utilizando a forma da cabeça, o tipo de cabelo, a pigmentação e a estatura.

Em 1926, o antropólogo de Harvard Earnest Hooton, o principal tipologista racial do mundo, enumerou 24 caraterísticas anatómicas, tais como “a presença ou ausência de um tubérculo pós-glenoide e de uma fossa ou tubérculo faríngeo” e “o grau de curvatura do rádio e do cúbito”, admitindo, no entanto, que “esta lista não é, evidentemente, exaustiva”.

Toda esta confusão era o oposto de como a ciência deveria funcionar: À medida que as ferramentas melhoravam e as medições se tornavam mais precisas, o objeto de estudo – a raça – tornava-se cada vez mais confuso.

A cultura como explicação para a diferença

Em 1933, a ascensão do nazismo tornou mais urgente o estudo científico da raça. Como escreveu o antropólogo Sherwood Washburn em 1944: “Se vamos discutir questões raciais com os nazis, é bom que tenhamos razão”.

No final da década de 1930 e no início da década de 1940, duas novas ideias científicas foram concretizadas. Em primeiro lugar, os cientistas começaram a olhar para a cultura, e não para a biologia, como o motor das diferenças entre grupos de pessoas. Em segundo lugar, a ascensão da genética populacional desafiou a realidade biológica da raça.

Em 1943, os antropólogos Ruth Benedict e Gene Weltfish escreveram um trabalho intitulado The Races of Mankind. Escrevendo para um público popular, defendiam que as pessoas são muito mais parecidas do que diferentes e que as nossas diferenças se devem à cultura e à aprendizagem, não à biologia. Mais tarde, uma curta-metragem de animação deu a estas ideias uma circulação mais alargada.

Benedict e Weltfish argumentavam que, embora as pessoas fossem, de facto, fisicamente diferentes, essas diferenças não tinham significado, uma vez que todas as raças podiam aprender e todas eram capazes. “O progresso da civilização não é monopólio de uma raça ou sub-raça”, escreveram.

A viragem para a cultura era consistente com uma mudança profunda no conhecimento biológico.

Uma ferramenta para compreender a evolução

Theodosius Dobzhansky foi um biólogo proeminente do século XX. Tal como outros biólogos, estava interessado nas mudanças evolutivas. As raças, que supostamente não mudavam ao longo do tempo, eram portanto inúteis para compreender a evolução dos organismos.

Uma nova ferramenta, a que os cientistas chamavam “população genética”, era muito mais valiosa. O geneticista, segundo Dobzhansky, identificava uma população com base nos genes que partilhava, a fim de estudar as mudanças nos organismos.

O ponto importante é que, qualquer que fosse a população escolhida pelo geneticista, ela estava a mudar ao longo do tempo. Nenhuma população era uma entidade fixa e estável, como era suposto as raças humanas serem.

Sherwood Washburn, que por acaso era amigo íntimo de Dobzhansky, trouxe essas ideias para a antropologia. Ele reconheceu que o objetivo da genética não era classificar as pessoas em grupos fixos. O objetivo era compreender o processo de evolução humana. Essa mudança reverteu tudo o que era ensinado por Hooton, seu antigo professor.

Em 1951, Washburn argumentou: “Não há como justificar a divisão de uma … população em uma série de tipos raciais” porque isso seria inútil. Presumir que qualquer grupo é imutável impedia a compreensão das mudanças evolutivas. Uma população genética não era “real”; era uma invenção do cientista que a usava como uma lente para entender a mudança orgânica.

Os geneticistas concluíram que as populações genéticas são ferramentas cruciais, mas para usos biológicos específicos – não para classificar as pessoas em grupos “reais” por raça.

Quem quer que queira classificar as pessoas, argumentou Washburn, deve apresentar as “razões importantes para subdividir toda a nossa espécie”.

“A exposição do Smithsonian mostra como a escultura racializada foi “tanto uma ferramenta de opressão e dominação como de libertação e capacitação”, conclui John P. Jackson.

No final de contas, a ciência concorda que a raça é uma invenção humana e não uma realidade biológica.

1 Comment

  1. Existem populações que vão acumulando diferenças dando origem a raças, subespécies e finalmente espécies.
    A separação em espécies é supostamente irreversível por já não se reproduzem entre si.
    Todas as outras diferenças podem ser revertidas.
    Nunca ouvi falar em populações imutáveis.
    Esta mistura entre ideologia e ciência não passa de propaganda.

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