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Caçadores, mutados, “invisíveis”. Quem são os ciganos do mar?

Passam a maior parte do tempo debaixo de água há mil anos, a seguir o peixe. A genética deu-lhes “poderes especiais” para os ajudar a sobreviver no mar, mas o futuro dos Bajau é em terra.

Quando a princesa de Johor desapareceu depois de ter sido arrastada por uma enorme inundação, o seu pai mandou os seus homens em seu auxílio: não podiam voltar até que a encontrassem, ordenou, mas a princesa acabaria por casar com um rei de Gowa, dando origem a um grupo de misteriosos caçadores marinhos, reza a lenda indonésia.

Na ilha de Bórneu, na Malásia, a princesa foi na verdade raptada e casada com o Sultão do Brunei, e os guardas que a transportavam, envergonhados, preferiram ficar em Bornéu e Sulu, dando origem ao tal grupo de nómadas; os Bajau Kubang, de Sabah, dizem que foi uma corrida de barco entre dois irmãos que deu origem ao grupo de nómadas do mar, depois de o irmão derrotado ter jurado que nunca mais regressaria a Johor.

Não se sabe qual (ou se alguma) destas histórias é a verdadeira. O que é certo é que há mais de mil anos que os Bajau, considerados os últimos nómadas marinhos do mundo, habitam as águas das Filipinas, Malásia e Indonésia, onde passam cerca de 60% do seu dia submersos, de acordo com um estudo de 2018 da Universidade de Cambridge — praticamente um horário full-time de trabalho.

Acredita-se que a inspiração para o clã Na’vi Metkayina, n’O Caminho da Água, o segundo filme da famosa saga Avatar, tenha stualmente mais de um milhão de membros, a procurar sustento debaixo de água, como verdadeiros caçadores aquáticos. Antes, viviam maioritariamente nos lepa-lepa, mas o anti-nomadismo forçou-os há muito a trocar estes barcos tradicionais por palafitas que, juntas, formam aldeias sobre águas e recifes de coral próximos da costa.

Tradicionalmente, seguem o peixe. As suas viagens baseiam-se na localização do alimento. Deitam abaixo as suas habitações, saem de onde estão, e reconstroem as casas onde nada o peixe, que caçam com lanças e anzóis improvisados mas, acima de tudo, com impressionantes habilidades de mergulho.

E “não é só fama”, como nota o criador de conteúdos e viajante português, João Amorim, que passou recentemente três dias com os Bajau Laut na Indonésia: “não pescam com isco. Atiram o anzol e quando vêm os peixes, puxam-no e prendem os peixes, como ninjas”.

 

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Em mil anos, muito mudou neste povo, e muito mais está por mudar.

Mutações genéticas permitem mergulhos de 13 minutos (mas há perigos)

Conhecidos pela suas incríveis capacidades de mergulho livre, de que usam e abusam para caçar e recolher alimento, os nómadas do mar (ou ciganos do mar, como são também conhecidos) desenvolveram caraterísticas genéticas únicas ao longo dos anos que lhes permitem aguentar muito mais tempo de baixo de água do que os seres humanos “comuns”. Muitos conseguem mergulhar durante 13 minutos a profundidades de até 70 metros, sem botijas de oxigénio ou fatos de mergulho, à exceção de, por vezes, óculos de mergulho feitos de madeira e pesos, que os ajudam a descer.

Estas habilidades podem ter origem numa mutação genética que sofreram para os ajudar a suportar mergulhos mais longos: têm baços maiores, segundo um estudo publicado na Cell em 2018.

O nosso baço armazena glóbulos vermelhos e ajuda o corpo a gerir os níveis de oxigénio sob pressão. Quanto maiores forem, mais tempo de mergulho permitem, uma vez que se contraem para libertar oxigénio para a corrente sanguínea. Muitos mamíferos marinhos (as focas, por exemplo) têm baços alargados, e o mesmo parece aplicar-se aos ciganos do mar: os seus baços são 50% maiores do que os do grupo vizinho Saluan, que vive em terra, de acordo com a investigação de Melissa Llardo.

Um curioso gene identificado nos membros destes nómadas, associado ao baço, influencia as hormonas da tiroide. Foi encontrado nos Bajaus, mas não nos Saluan, e pode mesmo ser a chave para as proezas aquáticas do grupo. Mas não é só o baço que as explica: o treino diário também conta e permite alterar fisicamente o corpo para aumentar a resistência — a flexibilidade da parede torácica e do diafragma ajudam os mergulhadores a lidar com as pressões das águas profundas.

Os Bajaus também lidam muito melhor com a privação de oxigénio, e perceber como o fazem pode ser essencial na medicina, nomeadamente na descoberta de potenciais tratamentos de hipoxia aguda, que ocorre quando o corpo perde oxigénio subitamente.

Nem tudo é um mar de rosas. Muitos Bajaus morrem com bolhas de azoto mortais no sangue, vítimas da doença da descompressão. Para o evitar, muitos mergulhadores Bajaus estouram os tímpanos ainda durante a adolescência, para poderem mergulhar sem dores desde tenra idade.

“Sangra-se dos ouvidos e do nariz e tem de se passar uma semana deitado, por causa das tonturas. Depois disso já se pode mergulhar sem dores”, diz Imran, de uma comunidade Bajau indonésia, ao The Guardian.

Povo do mar, forçado a viver em terra

Na Malásia, o grupo enfrenta cada vez mais dificuldades perante a sociedade. No ano passado, cerca de 500 Bajaus foram expulsos das suas casas, no estado de Sabah, e as suas habitações flutuantes destruídas e incendiadas. Lá, o maior problema da comunidade é a falta de documentação, que abre portas a discriminação sistemática, relata o ABC News.

Muitos dos 28 mil Bajaus que moram em Sabah não têm documentos de identificação, o que os deixa ainda mais à margem da sociedade, longe do acesso a cuidados médicos e serviços de educação. Defensores de direitos humanos alertam que o mesmo pode vir a acontecer com outros Bajaus que vivem em condições semelhantes.

Também não há consenso sobre o seu estatuto indígena, “porque grupos indígenas muito mais proeminentes e óbvios têm defendido que quem não provém de práticas consuetudinárias baseadas na terra não é indígena”, explica o antropólogo Vilashini Somiah ao jornal australiano. Os apátridas Bajah tornam-se assim cada vez mais “invisíveis”.

O governo malaio argumenta que a deslocação dos nómadas é necessária para melhorar a segurança e combater as atividades ilegais (nomeadamente ligadas à pesca) no Parque Marinho de Tun Sakaran, um popular destino turístico; os críticos dos despejos dizem que os líderes políticos do país se têm mostrado reticentes em conceder cidadania aos Bajaus por medo das reações das fações anti-imigrantes em ascensão no país. “Ficar em cima do muro tem sido muito benéfico para eles”, diz Somiah.

Olhando para a Indonésia, a sobrepesca e as alterações climáticas são a maior ameaça ao estilo de vida Bajau. Na aldeia de Pulau Papan, o grupo nómada, antes habituado a vender iguarias como pepinos do mar ou pérolas, está muito diferente.

“Somos pescadores, mas trabalhamos numa quinta”, confessa uma pessoa da tribo ao jornal chinês SCMP: “dá mais dinheiro”.

 

Tomás Guimarães, ZAP //

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