Milhares de “mortos” na Índia lutam para serem declarados vivos

As disputas por terrenos levam a que as autoridades declarem que os proprietários estão mortos para que os familiares se apropriem das terras. É practicamente impossível reverter esta “morte” legal.

Há milhares de homens na Índia que estão legalmente mortos, mas biologicamente vivos. Se ainda há muitas situações onde estas confusões resultam de erros médicos, nestes casos, estes “enganos” são completamente propositados.

De acordo com a Vice, um esquema criminoso na Índia tem levado a que inúmeras pessoas vivas sejam declaradas mortas, tudo com o objectivo de se roubar os terrenos as estes homens “mortos”, num país onde as leis são fáceis de explorar.

A legislação no país, que não foi mudada desde a era colonial, dá poder aos gestores das receitas das terras para declarar que uma pessoa morreu — e estas declarações são quase impossíveis de reverter.

Quem é declarado morto, fica depois impossibilitado de ter uma vida normal, dado que não consegue arrendar uma casa, arranjar emprego, começar um negócio, casar-se ou divorciar-se.

Perdi o meu negócio de tecelagem, o meu sustento, a minha terra, tudo. Neste país, os terrenos são os bens mais importante para as pessoas e são a razão para a ganância de todos”, explica Lal Bihari, um homem de 68 anos que foi declarado “morto” em 1976, quando os seus primos subornaram os responsáveis locais para se poderem apropriar das suas terras.

Enquanto estava “morto”, Bihari cometeu vários crimes para tentar ter a sua vida de volta, incluindo sequestrar o seu sobrinho, tentar subornar um polícia, tentar ficar com a pensão de viuvez da esposa, ou invadir uma assembleia legislativa. Chegou a ser preso, mas foi libertado horas mais tarde, já que está tecnicamente morto.

“Estive perto de pegar em armas. Não foi assim que imaginei que a minha vida seria”, conta. Depois de 18 anos de luta constante, Bihari conseguiu finalmente reverter a sua “morte” em 1994 e até acrescentou Mritak — morto em hindi — ao seu nome.

A sua história ganhou mediatismo internacional e inspirou um filme de Bollywood, mas está longe de ser a única. Em 1980, Bihari fundou a Mritak Sangh, ou a “Associação dos Mortos”, que se dedica a apoiar pessoas na mesma situação.

Violência em nome dos terrenos

As disputas por heranças e pelo controlo dos terrenos na Índia não é por acaso. Os últimos censos no país, em 2013, revelaram que apenas 7% da população controla 47% da terra.

Seis em cada 10 indianos dependem da agricultura e dos terrenos onde vivem para alimentar as suas famílias. Esta dependência, aliada à corrupção desenfreada na Índia, dá aso ao surgimento destes “mortos-vivos”.

“Neste regime de propriedade privada da terra, os terrenos estão a aumentar de valor e as pessoas querem possuir cada vez mais“, afirma Shipra Deo, uma especialista que trabalha com a Landesa, uma organização global de defesa dos direitos à terra.

Deo é perita especificamente no apoio às mulheres, que são um dos segmentos da população mais prejudicados. No estado de Rajasthan, por exemplo, são recorrentes as acusações de bruxaria para que as mulheres não possam possuir os territórios.

A especialista exemplifica que ter terrenos permite que as mulheres “se afirmem” e que não fiquem presas em “relacionamentos violentos ou abusivos” por razões económicas. “Abre caminho para uma vida de dignidade“, defende.

Um relatório de 2016 do grupo de defesa legal Daksh descobriu que dois terços de todos os casos civis na Índia estão relacionados a terras e propriedades. A maioria dos litigantes são pobres com pouca escolaridade, de castas inferiores, ou ambos.

A situação motiva ainda muita criminalidade violenta. Em 2018, por exemplo, um casal idoso foi sufocado até à morte pela própria filha de 26 anos, tudo por causa de um terreno. No mesmo ano, um homem de 40 anos arrancou um olho ao seu pai pela mesma razão.

Mesmo fora das famílias, máfias locais e esquemas de corrupção na política já levaram à apropriação de terrenos em grande escala e houve até jornalistas e denunciantes a ser assassinados.

Adriana Peixoto, ZAP //

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