Aplausos para o que aconteceu no Parlamento, entre a ministra e Carlos Guimarães Pinto. Familiares de pessoas que exercem cargos públicos estão limitados.
Esta quarta-feira verificou-se uma situação no Parlamento português que justifica ser sublinhada.
Uma situação entre deputado e ministra, em discussão pública, foi resolvida com dignidade.
Não houve troca de insultos, de acusações, de menções ao passado longínquo. Houve elevação e respeito mútuo. Público, mas honesto.
Numa audição com a ministra da Coesão Territorial, e mesmo não estando na lista de trabalhos, surgiu o assunto do dia de ontem: duas empresas detidas parcialmente pelo marido de Ana Abrunhosa terão beneficiado de centenas de milhares de euros em fundos comunitários. Ana Abrunhosa gere os fundos comunitários.
Bruno Nunes foi o primeiro deputado a trazer o assunto para o debate. O deputado do Chega perguntou mas nunca teve respostas sobre o caso.
Mas foi com Carlos Guimarães Pinto, da Iniciativa Liberal (IL), que o diálogo se prolongou.
Porque se justifica, citamos aqui tudo que foi dito sobre o assunto, a partir de uma certa altura da audição.
Guimarães Pinto opinou: “Existe um profundo conflito ético. Até ao final do dia, a senhora ministra tem duas opções. Ou a empresa do seu marido devolve os fundos, assume o erro que foi aceitar esse tipo de fundos… E isto é uma chatice, é verdade. Nós temos um fundo empresarial que, infelizmente, está viciado em fundos europeus. E é uma chatice que alguém que, só por ser casado com uma ministra, não possa estar em situação de igualdade. É uma chatice”.
“Mas é uma chatice que decorre da responsabilidade que alguém que exerce cargos públicos deve ter. E, se achar que essa chatice – que é mesmo uma chatice – é demasiado para si, a segunda opção seria deixar esse cargo público que traz estas obrigações. Mas não tenho prazer nenhum em que a ministra deixe o seu cargo“.
“Repito, senhora ministra: é uma chatice. É uma chatice todos estes problemas que nós temos, que a nossa família, os nossos familiares directos têm, por exercermos cargos públicos. Mas é uma chatice que aceitamos quando assumimos estes cargos públicos”.
“Mais uma vez: eu tenho-a como uma pessoa séria e ética; e não acredito que, apesar de não responder, não tenha consciência daquilo que está a acontecer. E também lamento muito pelo seu marido, por não ter as condições que outros empresários do mesmo sector têm. Mas foi essa a opção que nós tomámos aqui”.
Refira-se que, antes, houve um pedido de uma deputada do PS, Isabel Guerreiro, que queria que as palavras do deputado da IL sobre este assunto fossem apagadas e retiradas da acta.
Voltando ao diálogo, Ana Abrunhosa reagiu: “Eu só quero dizer-lhe uma coisa: do que depender da minha opinião, nada do que eu disse será apagado. Deixo aqui esta declaração. Não há necessidade de fazer isso. O senhor deputado exerceu a sua opinião, como eu tenho a minha. Portanto, não lhe podendo responder, eu deixo esta declaração”.
“Nós não devemos – peço desculpa, senhora presidente – mas, a bem do entendimento de todos, peço que nada seja apagado, peço que tudo fique gravado. Porque acho que ninguém ganha com isso. Nós estamos em democracia, é em democracria que debatemos as nossas ideias e, no fim do dia, é com a nossa almofada que fazemos contas. E portanto, senhor deputado, agradeço-lhe imenso as suas palavras e respeito tudo o que me disse. Dito isto…”.
Silêncio.
16 segundos de silêncio na sala.
Um momento raro: a ministra estava a chorar. O deputado da IL tentou desviar as atenções, num sinal de empatia com Ana Abrunhosa: “Quer que responda?”.
“Eu sou uma chorona”, justificou-se a ministra, a sorrir.
O lado sério voltou logo a seguir: “Porque eu sei que as críticas são feitas com amizade. A gente consegue entender, não é? Conseguimos entender quando as críticas são feitas com amizade ou com malícia”.
A elevação continuou quando Carlos Guimarães Pinto falou: “Começo por notar a dignidade da sua resposta em relação à questão da gravação (pedido da deputada do PS para apagar). Imagino que não esteja a ser um dia muito fácil para si. E digo isto honestamente: espero que, até ao final do dia, os fundos das empresas do seu marido sejam devolvidos. Porque gostaria muito de a voltar a ter aqui numa futura audição”.
Exemplos de chatices
Se não nos enganámos nas contas, o deputado da IL disse “chatice” nove vezes quando falava do facto de o marido da ministra estar condicionado – precisamente por ser marido da ministra. Recordamos: “Lamento muito pelo seu marido, por não ter as condições que outros empresários do mesmo sector têm. Mas foi essa a opção que nós tomámos aqui”.
Afinal, que condicionantes têm os familiares directos de pessoas que exercem cargos públicos?
A lei actual, lembrou o PS através de Pedro Delgado Alves, garante que o Governo não intervém quando estão em causa assuntos relacionados com familiares próximos dos seus elementos. Além disso, “os familiares próximos dos elementos do Governo são objecto de inibições“, disse o vice-presidente do grupo parlamentar do PS.
Rui Pedro Antunes, editor de Política do Observador, explicou que um processo de qualquer ministro, se envolver por exemplo um filho, vai ser alvo de um “escrutínio maior”.
No entanto, o especialista relativizou essas limitações: “Só há uma esposa do primeiro-ministro: e ela sabe que está impedida de fazer certas coisas. Só há um marido da ministra da Coesão, que é a “mãe” de todos estes fundos europeus. O marido dela é uma pessoa limitada, num país com 10 milhões de habitantes”.
“Não me parece muito grave que, durante os cinco anos em que a mulher é ministra, no fundo não concorra a fundos europeus. E a própria ministra sabia que iria ter essas limitações e que iria criar limitações para as pessoas à volta dela“, acrescentou.
Rui Pedro deixou um exemplo: se o filho de Ana Abrunhosa quisesse ser presidente da Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional (CCDR) Centro, ele sabe que não vai ocupar esse cargo enquanto a sua mãe for ministra da Coesão (Ana Abrunhosa foi presidente da CCDR-Centro).
Outro exemplo, no Governo actual: António Costa Silva aceitou ser ministro da Economia e do Mar, quando recebia cerca de 400 mil euros por ano na empresa petrolífera Partex. “Obviamente abdicou de alguma coisa para ir para o Governo. Isto depende sempre de uma decisão pessoal”.
No fundo, a lei, algo “obscura”, não define o que cada familiar de governante pode ou não pode fazer. É caso a caso.
Mas a filha de um ministro da Educação não seria colocada como directora de uma escola sem uma “chuva” de críticas públicas e pedidos de demissão (mesmo que justificasse o cargo). O irmão de uma ministra da Cultura, se passasse a ser encenador no Teatro Nacional São João, dificilmente iria permanecer no cargo durante muito tempo (mesmo que justificasse o cargo). E o marido de uma ministra da Coesão…
“É difícil? Claro que é. Ninguém disse que não era. E isso acaba por envolver quem está à volta. Mas é o preço a pagar por cumprir essa missão de serviço público”, completou o editor de Política.
Aparentemente, está tudo legal neste caso de Ana Abrunhosa e do seu marido. Mas há um conflito ético, como disse Guimarães Pinto: os fundos que beneficiaram as empresas são geridos pela esposa de um proprietário dessas empresas.
E fica sempre a hipótese: se a ministra da Coesão Territorial fosse outra pessoa qualquer, provavelmente as empresas em causa receberiam os fundos na mesma. É uma hipótese, não uma certeza.