Tribunal da Regulação deu como provado que o antigo banqueiro violou uma série de regras de mercado quando o BES vendeu papel comercial do GES.
Segundo o Público, todas as infrações que a Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM) imputou a Ricardo Salgado, praticadas meses antes da queda do Banco Espírito Santo (BES), com a venda de papel comercial do Grupo Espírito Santos (GES) em 2013 e 2014, foram confirmadas esta semana pelo Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão (TCRS).
O tribunal sediado em Santarém — onde vão parar as contestações a decisões tomadas pelos reguladores portugueses, da CMVM à ERC, passando pela Autoridade da Concorrência — confirmou na terça-feira que Salgado violou uma série de deveres de transparência em relação aos clientes do BES.
Ao todo, a juíza, Vanda Miguel, deu como provado que o antigo gestor praticou oito infrações às regras de mercado, ao não prevenir conflitos de interesses e ao não divulgar informação com qualidade.
Neste julgamento não foi apreciada matéria criminal, mas sim infrações ao Código dos Valores Mobiliários.
À luz da lei, Ricardo Salgado deveria ter cumprido um conjunto de regras para que os clientes que pretendiam comprar papel comercial do GES decidissem com base em informação financeira correta. No entanto, depois do colapso do banco, a CMVM encontrou várias falhas que o tribunal de primeira instância agora veio confirmar.
Embora os factos já tenham sete anos, a decisão judicial não tardou a chegar. A iniciativa da CMVM que Salgado e outros arguidos contestaram é de julho de 2021. A juíza concluiu o julgamento menos de um ano depois.
Uns arguidos foram condenados, outros absolvidos, outros condenados em relação a partes da acusação. No caso de Salgado, há infrações idênticas, porque umas dizem respeito a um período e outras a outro, mas por falhas semelhantes.
Cada infração implica uma contra-ordenação, à qual, por sua vez, está associada uma determinada coima individual.
Ao todo, a soma das oito infrações associadas a Salgado chega aos 3,27 milhões de euros, mas, tendo em conta o cúmulo jurídico, o tribunal aplicou uma coima única de dois milhões, à semelhança do que fizera a CMVM.
Falhas com dolo
Segundo o tribunal, o conhecido banqueiro violou, com dolo, uma regra do Código de Valores Mobiliários que implicava que atuasse de modo a “evitar ou reduzir ao mínimo o risco de ocorrência de um conflito de interesses”.
Poderiam ser prejudiciais para os clientes do BES que entre setembro e dezembro de 2013 queriam comprar (ou compraram) papel comercial emitido pela Espírito Santo International (ESI), holding de topo do GES.
Esta entidade estava sediada no Luxemburgo e, através dela, os cinco ramos da Família Espírito Santo controlavam o braço financeiro do grupo (onde estavam o BES, o BESA de Angola, o ES Bank Panamá, a Tranquilidade ou o banco de investimento BESI) e o ramo não financeiro (empresas de turismo, saúde, área imobiliária, energia ou a sociedade ESCOM, que em Angola se dedicava à exploração mineira e à gestão imobiliária).
Salgado deveria ter mantido o registo diário das operações financeiras atualizado, o que não aconteceu. A condenação é, à luz do código, muito grave e daí resultou uma coima de 300 mil euros.
Em segundo lugar, o tribunal condenou Salgado por, perante uma situação de conflitos de interesse no momento da comercialização do papel comercial naqueles meses de 2013, não ter assegurado “aos seus clientes um tratamento transparente e equitativo”.
O resultado é uma coima de 350 mil euros, por uma infração igualmente muito grave. Também aqui a violação aconteceu “a título doloso”, como sucedeu nas oito circunstâncias apreciadas pelo tribunal em relação ao antigo líder do BES.
De seguida foi aplicada uma coima idêntica, de 350 mil euros, pela violação “do dever de dar prevalência aos interesses dos clientes” face aos seus próprios interesses ou às empresas com as quais tinha uma relação de domínio ou de grupo quando de setembro a dezembro de 2013 a ESI emitiu papel comercial. A contra-ordenação é igualmente muito grave.
Ficou igualmente provado pelo tribunal que Ricardo Salgado não divulgou “informação com qualidade” relativamente à comercialização do papel comercial emitido pela ESI naquele período de 2013, o que implica uma coima de 750 mil euros.
É, de novo, uma infração muito grave, por estar em causa uma situação enquadrada como comunicação ou divulgação “de informação que não seja completa, verdadeira, atual, clara, objetiva e lícita”. É a coima individual mais alta das oito.
Uma quinta violação está relacionada com a emissão de papel comercial de outra empresa, a Rio Forte, já no arranque de 2014, o ano da derrocada.
A Rio Forte era uma holding do ramo não financeiro (beneficiária das atividades de saúde ou turismo, como a Espírito Santo Saúde e a Herdade da Comporta).
Era controlada pela ESI e, de acordo com o relatório da comissão de inquérito ao universo BES/GES de 2015, passou a deter no final de 2013 os dois braços do grupo (o financeiro e o não financeiro).
Salgado, diz o tribunal, violou o “dever de atuar” com o objetivo de “evitar ou reduzir ao mínimo o risco de ocorrência de um conflito de interesses” relativamente à venda de papel da Rio Forte entre um período preciso — 9 de janeiro e 24 de fevereiro de 2014. É uma contra-ordenação muito grave que vale uma coima de 280 mil euros.
A sexta falha é a nova violação do dever de, num caso de conflito de interesses, “agir de forma a assegurar aos clientes um tratamento transparente e equitativo“, desta vez no momento da venda do papel comercial da Rio Forte naquele início de 2014. Com uma contra-ordenação muito grave, a coima aplicada é de 330 mil euros.
A história repete-se e, neste caso, Salgado praticou uma sétima infração ao não dar “prevalência aos interesses dos seus clientes” quando o grupo comercializou papel comercial da Rio Forte em janeiro e fevereiro de 2014, tal como acontecera meses antes com o caso da ESI. Com essa infração muito grave, a coima fixada foi de 330 mil euros.
A última contra-ordenação é idêntica a outra. Pela segunda vez em poucos meses, Salgado violou o “dever de divulgação de informação com qualidade”, agora relativamente à emissão da Rio Forte em janeiro e fevereiro de 2014.
Com mais uma contra-ordenação muito grave, a coima fica nos 580 mil euros, a segunda maior.
A partir da aplicação do cúmulo jurídico, o tribunal chegou-se à coima dos dois milhões. Não foi o único resultado da decisão.
Tal como fizera a CMVM, o tribunal aplicou uma sanção acessória que inibe Salgado, de 77 anos, de voltar a ser administrador, diretor ou chefe na área financeira durante cinco anos, a partir do momento em que a sentença transitar em julgado.
Os outros arguidos
Amílcar Morais Pires foi absolvido de uma prática e condenado por três infrações, em 300 mil euros (com uma coima inferior em cem mil euros à aplicada pela CMVM).
Também fica impedido de exercer funções de administrador, diretor ou de estar num lugar de chefia na área financeira, mas durante um ano, a partir da altura em que a sentença transitar em julgado.
José Manuel Espírito Santos Silva foi absolvido de algumas práticas e condenado por outras, com uma coima única de 500 mil euros (também abaixo da coima que contestou, de 750 mil euros).
Ficou ainda sujeito a uma suspensão da contra-ordenação em 250 mil euros durante dois anos. Da mesma forma, não poderá ser administrador, diretor ou chefe na área financeira durante dois anos.
Manuel Espírito Santos Silva foi absolvido de algumas imputações e condenado por outras, ficando sujeito a uma coima de 500 mil euros (abaixo dos 900 mil que lhe tinham sido aplicados pela CMVM) e à inibição de ser administrador na área financeira durante três anos.
Os administradores Joaquim Goes e Rui Silveira vinham acusados pela CMVM — o primeiro, com uma coima de 300 mil euros e o segundo de cem mil —, mas os dois foram absolvidos pelo tribunal.
O Haitong, banco que resultou do banco de investimento BESI, foi condenado em 400 mil euros, com uma suspensão parcial durante dois anos relativamente a 200 mil euros.