Num mundo onde as palavras têm peso político, poucos termos são tão carregados de significado como a forma como nos referirmos à nação mais populosa do planeta. Para os chineses, a China a que nos referimos quando assim a chamamos não é simplesmente “China” — é China Continental.
Para os portugueses, Portugal é Portugal, e pronto. Inclui a Madeira e os Açores. Só mesmo quando estamos a ver a meteorologia é que nos surge pela frente a expressão “Portugal Continental“.
Mas para os chineses, o assunto é muito diferente, muito delicado, e não é apenas uma questão de semântica.
Para a maior parte do mundo, a China é simplesmente “China”. Porém, os cidadãos chineses e principalmente o seu governo fazem questão de lhe chamar “Mainland China” (“China Continental”) – uma distinção aparentemente subtil que esconde décadas de tensão geopolítica e reivindicações territoriais não resolvidas.
A terminologia remonta ao fim da guerra civil chinesa (1945-1949), que terminou com a capitulação do governo nacionalista da República da China, liderado desde 1928 por Chiang Kai-shek, e a vitória dos comunistas liderados por Mao Tsé-tung.
Os nacionalistas fugiram para a ilha de Taiwan, na altura chamada Ilha Formosa, e estabeleceram em Taipei o governo do que continuaram a chamar, até aos nossos dias, de “República da China” (RoC). Para quem não liga a detalhes, simplesmente “Taiwan”.
Os comunistas de Mao, por seu turno, estabeleceram no território continental a “República Popular da China” (PRC) — a tal “China” a que nos referimos de forma simplista. Há assim, desde então, duas entidades políticas diferentes que reivindicam ser a “verdadeira China”.
O governo de Pequim reivindicou desde sempre soberania sobre Taiwan, que não reconhece como território independente, e dois territórios que considerava parte integrante da China: as regiões administrativas de Hong Kong, entregue pelos ingleses em 1997, e de Macau, que o nosso país entregou em 1999.
No resto do mundo, ninguém se lembra de pensar se “a China” inclui ou deixa de incluir Hong Kong e Macau — fazem farte da China, apesar de as duas regiões administrativas manterem (alguma) autonomia legislativa, executiva e judicial.
Mas para os chineses (de Pequim), “a China” é apenas a parte continental da República Popular da China, que inclui a “Mainland China”, Hong Kong, Macau… e, especialmente, Taiwan. Além, claro, das restantes 5 regiões autónomas, entre as quais as mais conhecidas Mongólia e Tibete.
Esta nomenclatura reforça a posição oficial de Pequim de que a ilha de Taiwan, que tinha sido anexada em 1945 após a rendição do Japão, é uma “província rebelde” — que inevitavelmente deverá um dia reunificar-se com o continente.
Por outro lado, para o governo em Taipei, que continuou a ser liderado por
Chiang Kai-shek até à sua morte, em 1975, o uso do termo “China Continental” tem sido historicamente conveniente, pois permite manter a narrativa de que o governo de Taiwan ainda representa toda a China, incluindo o continente.
Constitucionalmente, a República da China não renunciou à sua reivindicação como “único governo legítimo de toda a China”. Contudo, com a evolução da identidade taiwanesa nas últimas décadas, esta posição tem-se tornado cada vez mais complexa.
Com efeito, à medida que a pequena ilha de Taiwan se transformava num país desenvolvido (é a 21ª maior economia do Mundo), com uma identidade cultural divergente, que reivindica a sua independência e soberania, foi deixando de fazer sentido aos taiwaneses acharem que o seu país “inclui a China Continental”.
Ainda assim, 76 anos após o fim da guerra civil chinesa, a batalha semântica da nomenclatura que usamos para designar os dois territórios continua bem viva. E quando um cidadão chinês se refere ao seu país como “China Continental”, não está propriamente preocupado com a meteorologia.