Ninguém inventou a roda

Kai James / DALL-E-2

Ilustração de como terão sido os carrinhos de mina originais utilizados nos Cárpatos em 3900 a.C.

Afinal quem é que inventou a roda? Simulações computacionais desvendam a forma improvável como nasceu uma tecnologia que mudou o mundo há quase 6.000 anos — e permitem concluir que a roda não foi inventada: foi nascendo.

Imagine que é um mineiro de cobre no sudeste da Europa no ano 3900 a.C.: dia após dia, transporta minério de cobre através dos túneis sufocantes da mina, e  resignou-se à monotonia extenuante da sua vida.

Então, numa bela tarde, vê um colega de trabalho a fazer algo notável.

Com um engenho de aparência estranha, o seu colega transporta casualmente o equivalente a três vezes o seu peso corporal numa única viagem.

Enquanto o seu colega regressa à mina para buscar outra carga, subitamente percebe que a sua profissão está prestes a tornar-se muito menos cansativa e muito mais lucrativa.

O que não percebe imediatamente é que está a testemunhar algo que vai acabar por mudar o curso da história – não apenas para a sua pequena comunidade mineira, mas para toda a humanidade, explica Kai James, professor de Engenharia Aeroespacial do Georgia Institute of Technology, num artigo no The Conversation.

Apesar do impacto imensurável da roda, ninguém até agora conseguiu saber ao certo quem a inventou, ou quando e onde foi concebida pela primeira vez.

O cenário hipotético descrito acima baseia-se numa teoria de 2015 que sugere que mineiros nos Montes Cárpatos – na atual Hungria – inventaram a roda há quase 6.000 anos como meio de transportar minério de cobre.

A teoria foi na altura apoiada pela descoberta de mais de 150 carroças em miniatura por arqueólogos que trabalhavam na região.

Estes modelos de quatro rodas em tamanho reduzido eram feitos de argila, e as suas superfícies exteriores foram gravadas com um padrão de vime reminiscente dos cestos utilizados pelas comunidades mineiras da época.

A datação por carbono revelou posteriormente que estas carroças são as mais antigas representações conhecidas de transporte com rodas até à data.

Esta teoria também levanta uma questão de particular interesse para Kai James, engenheiro aeroespacial que estuda a ciência do design de engenharia.

Como é que uma sociedade mineira obscura e cientificamente ingénua descobriu a roda, quando civilizações altamente avançadas, como os antigos egípcios, não o fizeram?

Uma ideia controversa

Durante muito tempo, assumiu-se que a roda teria evoluído a partir de simples troncos de madeira colocados à frente de um determinado “carro”. Mas até há pouco tempo, ninguém conseguia explicar de que forma ou por que motivo esta transformação ocorreu.

Além disso, a partir da década de 1960, alguns investigadores começaram a expressar fortes dúvidas sobre a teoria da evolução do tronco para a roda.

Afinal, para que os troncos, ou “rolos” de madeira, pudessem ser úteis, era necessário que houvesse um terreno plano e firme e caminho livre de inclinações e curvas acentuadas.

Além disso, uma vez que o carro passa por cima eles, era necessário que os rolos usados fossem continuamente trazidos para a frente do carro, para manter a carga em movimento.

Por todas estas razões, o mundo antigo usava rolos com moderação. Segundo os céticos, os rolos eram demasiado raros e demasiado impraticáveis para terem sido o ponto de partida para a evolução da roda.

Mas uma mina – com as suas passagens fechadas e feitas pelo homem – teria proporcionado condições favoráveis para os rolos. Este fator, entre outros, levou a equipa de Kai James a revisitar a hipótese dos rolos.

Um ponto de viragem

A transição de rolos para rodas requer duas inovações-chave.

A primeira é uma modificação do carro que transporta a carga: a base do carro deve ser equipada com encaixes semicirculares, que permitem encastrar os rolos e mantê-los no seu lugar. Desta forma, à medida que o operador puxa o carro, os rolos são puxados juntamente com ele.

Esta inovação pode ter sido motivada pela natureza confinada do ambiente da mina, onde ter de transportar periodicamente rolos usados de volta para a frente do carro teria sido especialmente oneroso.

A descoberta de rolos encastrados representou um ponto de viragem na evolução da roda e abriu caminho para a segunda e mais importante inovação.

Este próximo passo envolveu uma mudança nos próprios rolos. Para entender de que forma e por que razão esta mudança ocorreu, a equipa de investigadores recorreu à física e à engenharia assistida por computador.

Simular a evolução da roda

Para iniciar a investigação, os investigadores criaram um programa de computador projetado para simular a evolução de um rolo para uma roda, seguindo a hipótese de que esta transformação teria sido impulsionada por um fenómeno chamado “vantagem mecânica“.

Este é o princípio que permite que alicates amplifiquem a força de preensão de um utilizador, proporcionando alavancagem adicional. Da mesma forma, modificar a forma do rolo para gerar vantagem mecânica amplificaria a força de empurrar do utilizador, tornando mais fácil avançar o carro.

O algoritmo modelou centenas de formas potenciais de rolos e avaliou como cada uma se comportava, tanto em termos de vantagem mecânica como de resistência estrutural — usada para determinar se um determinado rolo quebraria sob o peso da carga.

Como previsto, o algoritmo convergiu finalmente para a forma familiar de roda e eixo, que determinou ser a ideal. Durante a execução do algoritmo, cada novo design teve um desempenho ligeiramente melhor que o seu antecessor.

Os investigadores acreditam que um processo evolutivo semelhante ocorreu com os mineiros há 6.000 anos, mas não está claro o que levou os mineiros a explorar formas alternativas de rolos.

Uma possibilidade é que o atrito na interface rolo-encaixe tenha causado o desgaste da madeira circundante, levando a um ligeiro estreitamento do rolo no ponto de contacto. Outra teoria é que os mineiros começaram a afinar os rolos para que os seus carros pudessem passar por pequenas obstruções no solo.

De qualquer forma, graças à vantagem mecânica, este estreitamento da região do eixo tornou os carros mais fáceis de empurrar. Com o passar do tempo, designs com melhor desempenho foram repetidamente favorecidos em relação aos outros, e novos rolos foram fabricados para imitar esses melhores desempenhos.

Consequentemente, os rolos foram-se toornando cada vez mais estreitos, até que tudo o que restou terá sido uma barra fina com grandes discos em ambas as extremidades. Esta estrutura rudimentar marca o nascimento do que agora chamamos de “a roda“.

De acordo com a teoria de Kai James, não houve um momento preciso em que a roda foi inventada. Em vez disso, assim como a evolução das espécies, a roda emergiu gradualmente de uma acumulação de pequenas melhorias, ou seja, a roda não foi inventada— foi nascendo.

 

 

 

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