Transformar óleos alimentares em sabão é o objetivo de um projeto solidário que entrega gratuitamente sabão a famílias angolanas carenciadas para que possam cumprir uma das principais medidas da luta contra a covid-19: lavar as mãos.
Fernanda Renée, criadora da Ambirecicla e mentora deste projeto, juntou voluntários e parceiros numa fábrica improvisada no Calemba II, município de Talatona, em Luanda, e propõe-se produzir 70 mil barras de sabão.
Para já, foram já entregues cerca de 40 mil barras que, além de contribuírem para mãos mais limpas, ajudam também a eliminar os óleos de cozinha usados de forma não poluente.
Quarenta e duas barras de sabão significam que deixaram de ser despejados no ambiente 36 litros de óleo.
Fernanda Renée começou a produzir sabão desta forma há 4 anos na sua ‘start up’ que visa o combate à pobreza através da reciclagem e dedicou-se, de forma solidária, a este projeto desde o início do estado de emergência em Angola, há quase 50 dias.
“Nesta fase de pandemia deixámos a nossa produção comercial para nos dedicarmos à produção voluntária”, disse à Lusa, sublinhando que um dos métodos de prevenção do coronavírus é precisamente a lavagem das mãos.
“No mercado, os preços subiram drasticamente, antes era 500 kwanzas agora está nos 1.800 kwanzas” (0,83 euros e três euros, respetivamente), comenta Fernando Renée.
Em consequência, muitas famílias desfavorecidas deixaram de ter acesso a este produto e Fernanda decidiu juntar-se a outros parceiros para produzir e distribuir barras de sabão gratuitamente: “O nosso lema é não deixar ninguém para trás neste surto de pandemia”.
Por dia, são produzidas cerca de mil barras, num processo essencialmente artesanal.
Numa tina juntam-se a água, o óleo e a soda cáustica – e um pouco de corante azul, que torna o sabão mais ao gosto das mulheres – numa mistura que vai engrossando até ficar uma pasta suficientemente consistente para ser vazada no molde.
Aí, a mistura terá de esperar várias horas para endurecer o suficiente e ser cortada em barras. O sabão tem de fazer ainda uma cura de 24 horas, no mínimo, antes de poder ser distribuído. Como os óleos, recolhidos em habitações, restaurantes e centros empresariais, são diferentes, cada barra é única na sua formulação.
Por isso, o trabalho de António Quilala, um dos voluntários da Química Verde Lab, que colabora no projeto é essencial para controlar a qualidade da matéria-prima, processo de produção e do produto final.
“O que fazemos é definir as proporções da água, do óleo e do hidróxido de sódio em função da qualidade do óleo que recebemos” para assegurar que o produto pode ser usado com segurança, explica.
Destaca também o papel do voluntariado em Angola: “É muito importante, na medida em que temos muitas pessoas que não têm condições para garantir a sua própria sustentabilidade. Aqueles que podem fazer algo pelos outros podem mudar a vida das pessoas e dar pelo menos um toque de magia com o seu apoio”.
A brasileira Malaquize Bertulucci, que trabalha na área de reciclagem e educação ambiental, ajuda na recolha dos óleos, que traz uma vez por semana, “para que o trabalho não pare”, recolhendo, em média, entre 320 e 340 litros.
“Estamos muito empenhados nisto, é uma maneira de evitar a contaminação do solo e estar junto das comunidades num momento tão difícil”, diz a voluntária.
Para chegar aos que mais necessitam, Fernanda Renée conta com os levantamentos feitos pelos administradores locais em colaboração com os coordenadores dos bairros.
E são muitos os que necessitam, como as 200 famílias de Lalama, uma comunidade remota do município de Icolo Bengo, na província de Luanda. Para chegar a esta comuna, é preciso sair da estrada principal e percorrer cerca de 20 quilómetros de um caminho apropriado para viaturas todo o terreno.
Finalmente chega-se a Lalama, um aglomerado de casas feitas de chapa, onde os habitantes não dispõem de água, nem de energia elétrica, nem posto médico, escolas ou transportes, e muitas vezes, nem de alimentos.
À alegria inicial da chegada dos visitantes, sucede-se alguma desilusão, quando os moradores percebem que a doação é apenas de barras de sabão. Com as chuvas, os terrenos agrícolas inundaram e passa-se fome, lamentam.
Há quem fique satisfeito com o sabão, mas há também quem reclame por que faltam tantas outras coisas e até quem desdenhe da qualidade do sabão. Os voluntários prometem melhorar, enquanto sensibilizam um grupo de crianças atentas para a lavagem das mãos
Eva João Mateus mostra-se agradecida com as barras de sabão que recebeu e que “é difícil” arranjar nesta altura, mas diz que o que ajudava mesmo “era as lavras [terrenos agrícolas]”
“As lavras todas foram com a água. Agora para tirar um cacho de banana para ir no 30 [mercado] comprar uma barra de sabão é muito custoso”, comenta .
E desabafa: “Não é só o sabão, ajudem-nos com mais coisas porque nós aqui somos carentes de tudo, é sal, é óleo, é fuba, de tudo estamos a precisar”.
Já Paulo Mota diz que o sabão é útil “para ajudar a combater o coronavírus na lavagem das mãos” e mostra-se apenas incomodado com a falta de eletricidade. Já quanto à água, diz que o rio fica “próximo”, no máximo 30 minutos.
O coordenador do bairro, Angelino de Castro Júnior, confirma as carências apontadas pela população, incluindo falta de água potável, apelando a mais apoios para os habitantes de Lalama, e explica como tem sensibilizado a população para os perigos da doença.
“Faço a comunicação junto à comunidade aqui no nosso jango [ponto de encontro]. Apelo a que cada munícipe lave as mãos com sabão, evitar assistir às novelas, evitar transportar de um lado ao outro: tem de ser do rio a casa, da lavra a casa, e temos de nos distanciar um metro de cada um”.
Mas as novelas porquê? “É que as novela junta as pessoas”, justifica. Como o povoado não tem energia, as famílias aglomeram-se para ver televisão nas casas com gerador, o que em tempos de pandemia parece estar mais contraindicado do que a pobreza.
// Lusa