Foi no meio de brinquedos, discos e selos que se descobriu o anúncio da venda de um pergaminho do século XIV no OLX. O caso não passou despercebido à Torre do Tombo, que já avançou para a compra.
Entre anúncios de raridades literárias e bibliográficas, um documento chamou à atenção. A descrição dizia que o pergaminho era a “escritura de entrega do Castelo de Lisboa que fez o Alcaide do mesmo, Martim Afonso Valente, ao Conde de Barcelos, Dom João Afonso Telo”.
O vendedor acrescentava que o custo, segundo o Público, era de 750 euros, e que a entrega poderia ser feita “em mão, na zona de Gaia”, ou via CTT.
O anúncio não passou despercebido ao autor do blogue Repensando a Idade Média, que alertou a Câmara Municipal de Lisboa. Mas também não escapou à atenção do Arquivo Nacional Torre do Tombo (ANTT), que já decidiu avançar com a compra do documento.
“Vamos exercer o direito de opção na aquisição do pergaminho, e já comunicámos isso ao vendedor”, na quarta-feira, o diretor-geral do ANTT, Silvestre Lacerda.
Ao abrigo do Decreto-Lei n.º 16/93, e depois de analisado o teor do documento, a instituição confirmou a sua autenticidade e achou que “faz todo o sentido integrá-lo no património arquivístico nacional”, acrescentou.
Silvestre Lacerda explicou entretanto que a decisão do ANTT foi tomada sem nenhum contacto prévio com a autarquia que gere o Castelo de São Jorge. “Considerámos que era mais ágil avançarmos nós próprios, para evitar a burocracia que certamente iria fazer arrastar o processo”, adiantou o diretor-geral, acrescentando que o pergaminho “irá ser incorporado nos arquivos nacionais”.
A Câmara Municipal de Lisboa disse ter tomado conhecimento da situação e, “apesar de o documento estar à venda na Internet e não nos canais habituais de comercialização deste tipo de fontes, está a fazer as démarches necessárias para aferir a sua autenticidade”.
O que dizem os especialistas
Ao Público, tanto os historiadores Luís Miguel Duarte e Bernardo Vasconcelos e Sousa, como José Luís Fernandes, autor do blogue Repensando a Idade Média, afirmaram a convicção de se estar perante um pergaminho autêntico.
Bernardo Vasconcelos e Sousa, que foi já também diretor da Torre do Tombo, diz que “tudo leva a crer que se trate de um documento autêntico, até pela assinatura do tabelião”, e nota que “Dom Afonso Telo era uma figura da alta nobreza da corte de D. Fernando”.
Não querendo pronunciar-se sobre o preço pedido, este historiador vê com agrado a decisão do ANTT de adquirir o documento, que “tem principalmente um valor documental”.
Vasconcelos e Sousa acha que o pergaminho “não trará informação que não exista já do ponto de vista da História”, considerando que o seu conteúdo “estará seguramente registado na chancelaria de D. Fernando”, mas, tratando-se de um documento original, irá permitir o cotejo com esse registo.
Raridades do OLX
A maior raridade deste caso parece ser o facto de “o pergaminho ter aparecido no OLX, quando o que é normal é estes documentos surgirem em alfarrabistas e em leilões de bibliotecas antigas”, disse José Luís Fernandes. Este historiador admitiu que o pergaminho possa provir do arquivo da Casa de Abrantes.
Silvestre Lacerda ainda não tem ainda informação sobre a sua origem, mas lembra que o espólio da Casa de Abrantes foi dispersado na sequência de uma herança e, desde o século XX, tem vindo a ser vendido em lotes em ocasiões diversas, estando já alguns incorporados na Torre do Tombo.
O diretor-geral nota que o ANTT tem “um gabinete de salvaguarda do património, que regularmente monitoriza vários sites e publicações de alfarrabistas para saber o que vai aparecendo no mercado”, e que foi assim que teve conhecimento do pergaminho do Castelo de Lisboa. O ANTT adquiriu recentemente um documento relacionado com a assinatura do Tratado de Alcáçovas.
Há cerca de dois anos, no Porto, apareceu num leilão um pergaminho de D. João I, cujo custo foi de tal modo alto que nenhuma instituição pública conseguiu igualar. Mas um acordo entre o comprador privado e a Faculdade de Letras da Universidade do Porto permitiu a esta a transcrição e publicação do documento, ficando assim salvaguardados o registo e divulgação.
“Mas, à exceção da Torre do Tombo, nem sempre as instituições públicas estão atentas a este mercado”, lamenta José Luís Fernandes. E mesmo quando estão, “muitas vezes não têm dinheiro, porque na Cultura nunca há dinheiro para nada”, acrescenta o historiador.
Além de que este é um mercado muito volúvel, e sempre sujeito a variáveis dificilmente identificáveis. “Há uma ideia, perversa, de que quem tem em casa um documento desses tem um tesouro. Pode sê-lo do ponto de vista patrimonial, mas não necessariamente monetário”, alerta Bernardo Vasconcelos e Sousa.
Silvestre Lacerda avançou também a intenção de o ANTT realizar um colóquio a chamar a atenção para a relação entre o documento recentemente adquirido e outros testemunhos já existentes nos arquivos nacionais sobre esta época.