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ADN ancestral revela segredos sobre uma doença europeia devastadora

Um novo estudo comparou bactéria ancestral com estirpe moderna e revelou o desenvolvimento histórico do patogénico.

Por dentro dos relatos das grandes epidemias que devastaram a Europa da antiguidade até ao século XX há uma doença que se destaca. Uma doença tão antiga que o próprio Hipócrates a descreveu numa série de febres altas que atingiram a cidade de Tasos durante um rigoroso inverno.

Nos relatos históricos, vários autores descreveram pacientes que aparentavam melhorias antes de recaírem num ciclo de febres. A doença surgia nos tempos mais adversos e ao longo dos séculos, os registos existentes descrevem epidemias de uma doença quase idêntica, geralmente logo após a guerra ou uma fase de carência alimentar.

Um dos registos desta doença aparece durante a Grande Fome Irlandesa de 1845 a 1852. Outro registo aborda a devastação da Europa Central e a Rússia após a Primeira Guerra Mundial, matando pelo menos cinco milhões de pessoas.

Durante vários anos, os historiadores atribuíam a culpa destas epidemias à Febre Recorrente – transmitida através de uma bactéria do piolho (Borrelia recurrentis). A lógica era simples: a Borrelia causava a única febre reincidente conhecida transmitida por piolhos e era capaz de se espalhar rápido o suficiente para causar uma epidemia.

Contudo, a bactéria tem sido invisível nos registos arqueológicos encontrados. Mas um novo estudo publicado a 24 de setembro no jornal “Proceedings of the National Academy of Sciences of the USA”, alterou esse facto e forneceu evidências de que a Borrelia recurrentis é de facto a culpada.

O caso

Através de sequências do ADN recuperadas de um esqueleto de uma mulher enterrada num cemitério medieval em Oslo, Meriam Guellil, paleontologista da Universidade de Oslo e os seus colegas conseguiram reconstruir quase por completo o genoma da Borrelia recurrentis.

O status socioeconómico da mulher foi revelado ainda antes de qualquer análise aos restos mortais por uma situação peculiar: a mulher tinha sido enterrada com o filho (entre os sete e os nove anos de idade) no extremo sul do cemitério – o mais distante da igreja – o que é revelador sobre a situação financeira da família.

A datação por carbono revelou ainda que a mulher morrera por volta de 1430-1465 e, com base no ADN bacteriano encontrado, os cientistas calcularam que a mulher morrera numa recaída da bactéria Borrelia recurrentis – sendo muito provável que tenha sido a febre a causa da sua morte.

“Na época do enterro a cidade ainda estaria afetada pelo declínio económico causado pela peste negra de 1300, o que deixou partes da população desnutridas e vulneráveis a doenças”, revelou Guellil acrescentando que “os resultados relatados neste estudo provavelmente representam um caso isolado da doença“.

Apesar de a informação recolhida não ser suficiente para confirmar que esta febre causou todas as epidemias históricas, é possível chegar à conclusão de que a doença esteve presente na Europa medieval. A verdadeira surpresa, no entanto, é como a versão europeia medieval da Borrelia recurrentis difere das variedades modernas que ainda subsistem na Etiópia, Eritreia, Somália e no Sudão.

O que o ADN medieval também sugere é que, em algum ponto da sua história evolutiva, a Borrelia recurrentis ter-se-á dividido em duas linhagens, desenvolvendo-se cada uma delas através de diferentes estratégias adaptativas.

A bactéria Borrelia recurrentis

A Borrelia recurrentis causa recaídas na febre porque o seu código genético permite à bactéria percorrer uma sequência aleatória de diferentes variantes de duas proteínas – os antigénios. Estas variações alteram a forma dos seus antigénios, permitindo que a Borrelia recurrentis sobreviva às respostas do sistema imunológico do hospedeiro.

O resultado é uma febre que aparece e desaparece e que escala rapidamente quando o sistema imunológico tenta responder a um novo conjunto de antigénios.

Contudo, este método para se defender do sistema imunológico é apenas uma solução evolutiva possível. Outros agentes patogénicos que enfrentam desafios semelhantes  desenvolveram genomas menores e uma maior virulência.

Guellil e os seus colegas compararam os genomas da linhagem medieval da Borrelia recurrentis às modernas estirpes africanas e às sequências de ADN de um parente próximo – o Borrelia duttonii, transmitido por carrapatos que também causa febres cíclicas. A comparação demonstrou que as estirpe de recurrentis tinha menos cópias intactas dos genes de variação de antigénios.

“Essa diferença é ainda mais pronunciada na linhagem medieval”, disseram os pesquisadores. As linhagens modernas também reduziram os seus genomas ao longo de incontáveis gerações desde o seu último ancestral comum, apesar de o terem feito de maneira diferente.

Uma das principais diferenças entre a estirpe medieval e a estirpe moderna é a sequência genética chamada OppA-1, envolvida no metabolismo. Nas variantes modernas, a OppA-1 foi reduzida a uma cópia imperfeita e não funcional chamada pseudogene. Na linhagem medieval e no seu parente próximo, o Borrelia duttonii, a sequência OppA-1 ainda funciona.

“Só podemos especular sobre o efeito dessa mutação no ciclo de vida ecológico da doença”, disse Guellil sobre a OppA-1.

Com base na comparação do genoma bacteriano medieval com as estirpes modernas, os pesquisadores sugeriram que as duas linhagens adaptaram-se a diferentes ambientes. E os seres humanos podem ter sido os culpados nas alterações através das mudanças nas práticas de higiene ou na habitação.

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