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A Excursão de Laschamps, ocorrida há 41 mil anos, levou quase ao colapso da atmosfera terrestre. O seu efeito notou-se nos comportamentos dos nossos antepassados, que passaram a ficar mais tempo nas cavernas e usar roupas com mais cobertura para se protegerem das queimaduras.
O primeiro encontro entre Raven Garvey, Agnit Mukhopadhyay e Sanja Panovska foi um pouco constrangedor. Um é arqueólogo e estuda a forma como os povos do passado interagiam com os seus ambientes. Os outros dois são geofísicos que investigam interações entre a atividade solar e o campo magnético terrestre.
Quando se conheceram, questionaram-se se o seu projeco pouco convencional, que ligava o clima espacial e o comportamento humano, poderia realmente ultrapassar um fosso disciplinar tão vasto. Agora, dois anos depois, os resultados – pessoais, profissionais e científicos – valeram o desconforto inicial.
A colaboração, que culminou num artigo recente na revista Science Advances, começou com uma única pergunta: O que aconteceu à vida na Terra quando o campo magnético do planeta quase colapsou há cerca de 41 mil anos?
Estranheza quando o escudo magnético da Terra falha
Este quase colapso é conhecido como a Excursão de Laschamps, um evento geomagnético breve, mas extremo, que recebeu este nome em homenagem aos campos vulcânicos em França, onde foi identificado pela primeira vez. Na época da Excursão de Laschamps, perto do final do Plistocénico, os pólos magnéticos da Terra não se inverteram como acontece a cada poucas centenas de milhares de anos. Em vez disso, deslocaram-se, de forma errática e rápida, por milhares de quilómetros. Ao mesmo tempo, a intensidade do campo magnético desceu para menos de 10% da sua intensidade atual.
Assim, em vez de se comportar como uma barra magnética estável – um dipolo – como normalmente acontece, o campo magnético terrestre fragmentou-se em múltiplos pólos fracos por todo o planeta. Como resultado, o campo de força protetor a que os cientistas chamam magnetosfera tornou-se distorcido e permeável.
A magnetosfera desvia normalmente grande parte do vento solar e da radiação ultravioleta prejudicial que, de outra forma, atingiriam a superfície da Terra.
Portanto, durante a Excursão de Laschamps, quando a magnetosfera se rompeu, os modelos sugerem uma série de efeitos próximos da Terra. Embora ainda haja trabalho a ser feito para caracterizar precisamente estes efeitos, sabe-se que incluíam auroras – normalmente vistas apenas em céus próximos dos pólos, como a aurora boreal ou a aurora austral – a vaguear em direção ao equador, e doses significativamente mais elevadas do que as atuais de radiação solar nociva.
O céu de há 41 mil anos pode ter sido espetacular e ameaçador. Quando se aperceberam disso, os dois geofísicos quiseram saber se poderia ter afetado as pessoas que viviam na época.
A resposta do arqueólogo foi: absolutamente.
Respostas humanas ao clima espacial antigo
Para as pessoas na Terra naquela época, as auroras podem ter sido o efeito mais imediato e impressionante, talvez inspirando admiração, medo, comportamento ritual ou algo completamente diferente. Mas o registo arqueológico é notoriamente limitado na sua capacidade de captar este tipo de respostas cognitivas ou emocionais.
Os investigadores estão em terreno mais firme quando se trata dos impactos fisiológicos do aumento da radiação UV. Com o campo magnético enfraquecido, mais radiação nociva teria atingido a superfície da Terra, elevando o risco de queimaduras solares, lesões oculares, defeitos congénitos e outros problemas de saúde.
Em resposta, as pessoas podem ter adotado medidas práticas: passar mais tempo em cavernas, produzir roupa feita à medida para uma melhor cobertura ou aplicar protetor solar com pigmento mineral ocre na pele. A frequência destes comportamentos parece ter aumentado em partes da Europa, onde os efeitos da Excursão de Laschamps foram pronunciados e prolongados.
Nessa época, tanto os neandertais como os membros da nossa espécie, o Homo sapiens, viviam na Europa, embora as suas distribuições geográficas se sobrepusessem provavelmente apenas em certas regiões. O registo arqueológico sugere que diferentes populações exibiram abordagens distintas aos desafios ambientais, com alguns grupos talvez mais dependentes do abrigo ou da cultura material para proteção.
É importante realçar que não se está a sugerir que o clima espacial por si só tenha provocado o aumento destes comportamentos ou, certamente, que os Laschamps tenham provocado a extinção dos neandertais, o que é uma interpretação errada da investigação. Mas pode ter sido um factor contribuinte – uma força invisível, mas poderosa, que influenciou a inovação e a adaptabilidade.
Colaboração interdisciplinar
Colaborar no meio de uma lacuna disciplinar tão grande foi, a princípio, intimidante. Mas acabou por se revelar profundamente gratificante.
Os arqueólogos estão habituados a reconstruir fenómenos agora invisíveis, como o clima. Mas mesmo os arqueólogos que passaram anos a estudar os efeitos do clima nos comportamentos e tecnologias do passado podem não ter considerado os efeitos do campo geomagnético e do clima espacial. Estes efeitos são também invisíveis, poderosos e melhor compreendidos através de provas indiretas e modelagem. Os arqueólogos podem tratar o clima espacial como uma componente vital da história ambiental da Terra e da previsão do futuro.
Da mesma forma, os geofísicos, que normalmente trabalham com grandes conjuntos de dados, modelos e simulações, podem nem sempre estar envolvidos com alguns dos desafios do clima espacial. A arqueologia acrescenta uma dimensão humana à ciência. Ela recorda-nos que os efeitos do clima espacial não se limitam à ionosfera. Podem propagar-se às experiências vividas pelas pessoas em terra, influenciando a forma como se adaptam, criam e sobrevivem.
A Excursão de Laschamps não foi um acaso nem um acontecimento isolado. Interrupções semelhantes no campo magnético terrestre já aconteceram antes e voltarão a acontecer. Compreender como os humanos antigos reagiram pode dar pistas sobre como os acontecimentos futuros podem afetar o nosso mundo – e talvez até ajudar-nos a preparar.
ZAP // The Conversation