“Vida suspensa”. Encontrado fármaco que pode revolucionar a medicina e as viagens espaciais

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Uma equipa de Investigadores da Universidade de Harvard procurou um fármaco que fosse capaz de induzir de forma rápida e reversível um estado semelhante à hibernação em células e órgãos do corpo humano. E encontrou-o.

Um novo estudo sugere que um fármaco analgésico, designado SNC80, é capaz de induzir, de forma rápida e reversível, um estado semelhante à hibernação em órgãos e tecidos.

O fármaco, que não causa habituação, pode ser usado para preservar com  segurança células e órgãos destinados a transplante, evitando a necessidade de recorrer a preservação criogénica, cujo uso prolongado pode danificar os tecidos.

Segundo os autores do estudo, conduzido por investigadores do Wyss Institute da  Universidade de Harvard, o fármaco reduz a atividade metabólica e bioquímica das células, retardando o efeito nocivo dos danos causados numa grande variedade de incidentes traumáticos e em situações de infeções agudas.

Além disso, ao induzir um estado semelhante ao habitualmente encontrado em situações de hipotermia ou hibernação, o fármaco abre também novas perspetivas na exploração espacial, tornando possível que os humanos embarquem em futuras viagens de longa duração sem danos físicos.

A descoberta, que promete revolucionar a medicina e retirar as viagens espaciais do campo da ficção científica, foi apresentada num artigo publicado esta quarta-feira na revista científica eLife.

“No nosso estudo, procurávamos identificar potenciais drogas que pudessem desacelerar o metabolismo e replicar os estados normalmente induzidos por hipotermia ou hibernação”, explica Megan Sperry, investigadora do Wyss Institute e autora principal do estudo, em comunicado publicado no site do instituto.

“Precisávamos de uma abordagem que induzisse esse estado em menos de uma hora, de forma rápida e segura — e que permitisse que os órgãos recuperassem as suas funções normais em menos de 24 horas”, acrescenta a investigadora.

A equipa de investigadores recorreu a uma meta-análise de dados científicos para identificar possíveis fármacos candidatos com efeitos secundários não desejados, como a diminuição da temperatura corporal.

O SNC80, composto originalmente desenvolvido como analgésico que atua através de recetores opioides, chamou a atenção dos investigadores.

Num estudo com girinos, o fármaco mostrou-se capaz de desacelerar o metabolismo e induzir hipotermia, protegendo o organismo contra os efeitos do bloqueio do fluxo sanguíneo no interior da medula espinhal.

Uma hora após o tratamento com SNC80, o fármaco tinha reduzido a atividade dos girinos em 50%, comparada com a de girinos não tratados. O efeito foi rapidamente revertido assim que o medicamento foi removido do organismo dos girinos.

O SNC80 reduziu também o consumo de oxigénio, uma medida de atividade  metabólica do organismo, e teve notáveis efeitos supressivos mas reversíveis na frequência cardíaca dos girinos tratados com o fármaco.

Entusiasmada com estes resultados, a equipa decidiu então testar o potencial valor clínico do SNC80 na preservação de um coração de porco. Durante um período de seis horas, o coração foi mantido num dispositivo portátil de preservação oxigenada, a uma temperatura de 20 a 23°C – ou seja, abaixo da temperatura corporal, mas não hipotérmico.

O tratamento com SNC80 causou um rápido declínio no consumo de oxigénio do coração, para valores inferiores a 50% do que o dos controlos não tratados.

Uma vez restabelecido o fluxo sanguíneo e reiniciado o coração com um desfibrilador, o coração registou um rápido retorno aos níveis normais de consumo de oxigénio e de batimento cardíaco.

Os resultados encorajaram então a equipa a escalar o teste e estudar se o fármaco seria capaz de induzir em células humanas um estado de biostase — condição em que se encontram em animação suspensa, de forma semelhante à hibernação.

Em testes com células de uma secção de intestino, os investigadores descobriram que o tratamento com SNC80 tinha provocado,  ao fim de 48 horas, uma diminuição de quase 85% no uso de oxigénio – ou seja, no metabolismo.

À medida que o medicamento foi sendo eliminado das células, as suas funções metabólicas regressaram progressivamente ao normal.

O SNC80 não foi ainda aprovado para uso em contexto clínico. Durante  os ensaios pré-clínicos do medicamento, manifestaram-se efeitos secundários, incluindo convulsões, e o seu desenvolvimento foi interrompido.

A equipa do Wyss Institute presume que estas convulsões estejam relacionadas com a atividade delta opióide do SNC80, pelo que desenvolveu, para uso nos seus próximos estudos, um análogo não opioide chamado WB3.

“Os nossos resultados demonstram que o SNC80 pode ser utilizado para induzir biostase e produzir um estado hipometabólico que, em combinação com um sistema de transporte autocontido, poderia aumentar a viabilidade do órgão fora do corpo durante períodos de tempo sustentados”, explica Donald Ingber, autor sénior do estudo e fundador do Wyss Institute.

“Além disso, a capacidade de induzir rapidamente um estado tipo de animação suspensa reversível pode permitir novas abordagens terapêuticas para desacelerar os efeitos de trauma ou infecção aguda, aumentando as probabilidades de sobrevivência em vários cenários de emergência médica, como acidentes de trânsito, ou limitando o dano de um AVC”, conclui Ingber.

Armando Batista, ZAP //

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