Mais 44 milhões de pessoas podem entrar numa situação de fome grave devido à guerra, que levou ao fecho de quatro dos sete portos ucranianos no Mar Negro, por onde é escoada a grande maioria dos alimentos produzidos no país.
As consequências da guerra na Ucrânia vão alastrar-se a todo o mundo e podem mesmo causar uma crise alimentar mundial que se pode arrastar durante vários anos. Estes foram alguns dos alertas deixados na reunião das Nações Unidas sobre a insegurança alimentar que teve lugar em Nova Iorque esta quarta-feira.
O secretário-geral da ONU, António Guterres, avisou para a possibilidade de se bater um “novo recorde” nos níveis globais de fome e no número de pessoas em insegurança alimentar severa, que duplicou de 135 milhões, no período pré-pandemia, para 276 milhões actualmente.
O conflito tem amplificado problemas como as alterações climáticas, a pandemia e a desigualdade — e todos estes factores acabam por se reflectir na fome. “Os números são assustadores e são inextricavelmente ligados a conflitos, como causa e efeito. Se não alimentarmos as pessoas, alimentaremos o conflito”, defendeu Guterres.
Para além da fome em si, o problema também se estende noutros aspectos, como os efeitos da malnutrição ao longo da vida, o surgimento de novas ondas de refugiados ou o agravamento da desigualdade de género .
Guterres ressalva ainda que é possível acabar com a fome e que “há comida suficiente no mundo agora para todos, se agirmos juntos”. “A menos que resolvamos esse problema hoje, enfrentamos o espectro da escassez global de alimentos nos próximos meses”, avisa.
Nesse sentido, António Guterres identificou cinco passos urgentes para Governos e instituições financeiras internacionais resolverem a crise a curto prazo e evitar catástrofes de longo prazo.
Em primeiro lugar, o secretário-geral da ONU apelou a uma redução urgente da pressão sobre os mercados, aumentando a oferta de comida, e pediu o fim das restrições às exportações, pelo que os excedentes devem ser deixados à disposição dos mais necessitados.
“Mas sejamos claros: não há solução eficaz para a crise alimentar sem reintegrar nos mercados mundiais a produção de alimentos da Ucrânia, bem como os alimentos e fertilizantes produzidos pela Rússia e pela Bielorrússia – apesar da guerra”, disse.
Guterres apelou ainda a Moscovo para que permita a exportação segura de grãos armazenados nos portos ucranianos, revelando que tem estado em “contacto intenso” sobre esta questão com a Rússia, Ucrânia, Turquia, Estados Unidos, União Europeia e “outros países importantes”, estando “esperançoso” em resultados, mas sem dar mais pormenores desse diálogo para não “minar as chances de sucesso”.
Em segundo lugar, Guterres pediu que os sistemas de proteção social cubram todos os necessitados; e, em terceiro, sublinhou a necessidade de financiamento, pois os “países em desenvolvimento devem ter acesso à liquidez para que possam fornecer proteção social a todos os cidadãos em necessidade”.
“As instituições financeiras internacionais precisam intervir com investimentos generosos para evitar uma crise global da dívida“, advogou.
O reforço, por parte dos Governos, da produção agrícola e de investimentos em sistemas alimentares que protegem os pequenos produtores de alimentos é o quarto passo urgente identificado por Guterres e, por último, “as operações humanitárias devem ser totalmente financiadas para reduzir e evitar a fome”.
“Estamos a monitorizar de perto as perspectivas globais de segurança alimentar e a usar os nossos poderes de convocação para pressionar por medidas imediatas. A crise alimentar não respeita fronteiras e nenhum país pode superá-la sozinho. A nossa única chance de tirar milhões de pessoas da fome é agirmos juntos, com urgência e solidariedade”, concluiu o secretário-geral das Nações Unidas.
Mais 44 milhões de pessoas em risco
O Secretário do Estado dos Estados Unidos, Antony Blinken, também marcou presença na reunião e anunciou que Washington vai elevar o total da sua assistência alimentar de emergência para quase 2,6 mil milhões de dólares (2,48 mil milhões de euros).
Blinken também se vai encontrar com líderes africanos de países que vão ser dos mais afectados pela crise alimentar nos escritórios da ONU. A Rússia e a Ucrânia são responsáveis por um quarto das exportações do trigo em todo o mundo e nos países onde o pão é a base da dieta, o efeito do conflito tem sido ainda mais sentido.
Este mês, a Ucrânia fechou quatro dos seus portos depois destes terem sido tomados pelas forças russas e este encerramento ameaça mexer com a cadeia do comércio de produtos alimentares em todo o mundo, revela a CBS News.
“Se os portos na região de Odessa não abrirem imediatamente, duas coisas vão acontecer: Primeiro, vamos ter um colapso agrícola na Ucrânia. Em segundo, as fomes vão espreitar em todo o mundo. A comida precisa de ser transportada, os portos têm de reabrir e isto precisa de acontecer AGORA”, escreveu David Beasley, director executivo do Programa Alimentar Mundial, no Twitter.
If ports in the #Odesa region do not open up immediately, two things will happen:
First, we’re going to have agricultural collapse across #Ukraine. Second, famines will be looming all over the world. Food needs to move, ports must reopen and this needs to happen NOW. pic.twitter.com/G3xIFShBjJ
— David Beasley (@WFPChief) May 6, 2022
Cerca de 276 milhões de pessoas em todo o mundo já estavam a enfrentar a fome aguda no início de 2022 e mais 47 milhões arriscam-se a juntar-se a este grupo se o conflito na Ucrânia continuar. A região mais afectada será a África sub-sariana.
Antes da guerra, a maioria da comida produzida na Ucrânia — que era suficiente para alimentar 400 milhões de pessoas — era exportada pelos sete portos no sul do país com ligação ao Mar Negro, uma zona que é agora uma das mais massacradas pelo confronto armado contra a Rússia.
Os preços do trigo e do milho já aumentaram 22% e 20%, respectivamente, desde o início da guerra, somando-se às grandes subidas que já tinham acontecido no início de 2021 e no início de 2022. A trajectória de subida dos preços deve continuar no futuro próximo.
Adriana Peixoto, ZAP // Lusa