O teste do pezinho foi realizado pela primeira vez há 40 anos e desde então tornou-se uma rotina que salvou a vida de crianças e evitou que milhares tivessem atrasos neurológicos irreversíveis.
A história do Programa Nacional de Diagnóstico Precoce foi recordada à agência Lusa pelo médico Rui Vaz Osório, um dos impulsionadores do rastreio neonatal em Portugal, em conjunto com o médico Jacinto Magalhães, que em 1980 fundou o Instituto de Genética Médica do Porto, que tem atualmente o seu nome. Os acontecimentos que possibilitaram o rastreio neonatal de doenças genéticas ocorreram nas últimas décadas do século XX.
A técnica desenvolvida na década de 60 pelo médico e investigador Robert Guthrie de colheita de sangue sobre papel de filtro foi responsável por “uma das mais belas revoluções da medicina preventiva”, possibilitando o rastreio sistemático de doenças genéticas, disse Rui Vaz Osório, em entrevista à Lusa.
Desde então, programas de rastreio neonatal foram desenvolvido em todo o mundo, tornando-se parte fundamental dos programas de saúde pública.
Em Portugal, o programa arrancou em 1979 com o rastreio da fenilcetonúria, uma doença que provoca um atraso mental profundo, irreversível, sem cura, mas que se pode evitar se o bebé fizer uma dieta especial.
A primeira colheita foi feita no dia 14 de maio de 1979 na maternidade Júlio Dinis, no Porto. “Em princípio estávamos com muito receio, não sabíamos como o rastreio iria ser recebido em Portugal”, contou o médico, de 88 anos.
“Há sempre velhos do Restelo” que na altura diziam que “as mulheres em Portugal não tinham cultura” para perceber o porquê de fazer análises num bebé saudável e que programa nunca iria ter uma taxa de cobertura suficiente.
A verdade é que poucos anos depois do arranque do programa a cobertura já era de 80% e atualmente é de quase 100%, salientou. “Enfim, tivemos de vencer essas objeções mostrando claramente que ficava muito mais barato ao Estado prevenir doenças que provocam atraso mental do que suportar depois os custos do doente” ao longo da vida.
Segundo o médico, “o dinheiro que se gastava com o rastreio era dez ou vinte vezes mais barato” do que suportar o encargo do doente. “A partir daí arrancámos. A região centro inicialmente foi muito renitente, porque achava que havia outras prioridades, mas tudo isso se venceu”, contou.
O primeiro caso de fenilcetonúria detetado pelo rastreio aconteceu em 1980 e três anos depois já havia 10 doentes em tratamento que necessitavam de uma dieta especial. Mas na altura era “tudo muito complicado” porque os bebés não tinham apoios e os únicos alimentos que existiam era dois leites especiais sem fenilalanina, que eram muito caros.
“As primeiras situações foram dramáticas”
“As primeiras situações foram dramáticas”, disse Vaz Osório, contando o caso de uma mãe que vivia no Alentejo e que teve de ir trabalhar para Lisboa para poder comprar o leite.
Rapidamente se conseguiu que o Governo comparticipasse em 50% os leites e os produtos dietéticos pobres em fenilalanina que foram aparecendo e melhoraram a qualidade de vida dos doentes. Porém, algumas mães tinham dificuldades em utilizar corretamente estes alimentos e para as ajudar foi montada, em 1992, uma cozinha experimental no Instituto de Genética, e editado o primeiro livro com receitas feito pelas nutricionistas do instituto.
Em 1981, o rastreio neonatal passou a abranger o hipertiroidismo congénito, mas a “grande revolução” aconteceu em 2001 com o aparecimento do equipamento Tandem Mass, que consegue diagnosticar dezenas de doenças apenas com uma gota de sangue colhida através da picadinha no pé.
O problema era o preço, custava cerca de 50 mil euros, um problema que foi ultrapassado com a ajuda do projeto “Saúde XX1”. Em 2004, o Tandem Mass já estava a trabalhar em Portugal e a cobrir mais doenças, 26 atualmente, 25 das quais de origem genética.
“Fomos dos primeiros países europeus a avançar com esta tecnologia e isso foi uma revolução muito grande”, disse Vaz Osório, adiantando que ao longo das quatro décadas foram rastreadas cerca de 3,8 milhões de crianças e detetados mais de 2.000 casos.
O médico realçou que “se não fosse o rastreio todas estas doenças eram diagnosticadas tardiamente” e “as crianças já teriam tido morte ou atrasos neurológicos irreversíveis”.
“O tratamento das doenças genéticas não cura, unicamente evita que a doença progrida. Portanto, o objetivo é começar a fazer o tratamento antes de a doença ter feito lesões e é por isso que tem de ser feito nos primeiros dez dias de vida”, sublinhou.
Para acompanhar os doentes, foram criados centros específicos de tratamento nos principais hospitais do país que trabalham em colaboração com a Unidade de Rastreio Neonatal, Metabolismo e Genética, do Instituto Dr. Ricardo Jorge.
Apesar do teste não ser obrigatório, “os pais aderiram por saberem que é um projeto com pés e cabeça, com utilidade grande e com custos mínimos de fazer uma picada no pezinho, que não custa nada”.
// Lusa
Fantástico, um triunfo da ciência e do bom senso. Parabéns a todos os envolvidos.