Sim, isto é “quem nós somos”. A história de 250 anos de violência política nos EUA

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Alexander Hamilton (à direita), um dos “Pais Fundadores” dos EUA, foi mortalmente baleado pelo seu rival Aaron Burr durante um duelo, 1804.

Abraham Lincoln, Alexander Hamilton, John Fitzgerald Kennedy, Ronald Reagan, Charlie Kirk. Não são episódios, é um padrão: A violência política sempre fez parte da história da América.

No dia seguinte ao assassinato do ativista conservador Charlie Kirk, morto a tiro enquanto discursava na Utah Valley University, vários comentadores nos EUA repetiram um refrão já familiar: “Isto não é quem somos enquanto americanos.”

Outros manifestaram-se no mesmo tom. Whoopi Goldberg, no programa “The View”, afirmou que os americanos resolvem as suas divergências políticas de forma pacífica: “Não é assim que fazemos as coisas”.

No entanto, outros episódios terríveis surgem de imediato à memória.

Há 62 anos, a 22 de Novembro de 1963, o então presidente John F. Kennedy foi morto a tiro. Mais recentemente, a 14 de Junho de 2025, Melissa Hortman, antiga presidente da Câmara dos Representantes do Minnesota, foi assassinada a tiro em casa, juntamente com o marido e o seu golden retriever.

Enquanto historiador do início da república norte-americana, Maurizio Valsania acredita que é um erro ver esta violência nos Estados Unidos como “episódios” isolados. Na verdade, eles refletem um padrão recorrente, diz o professor de História Americana na Universidade de Torino, num artigo no The Conversation.

A política americana há muito que personaliza a violência, diz Valsania.

Repetidamente, provavelmente desde Alexander Hamilton, o “Pai Fundador” morto a tiro num duelo pelo seu rival Aaron Burr, que o avanço da História foi imaginado como dependendo de silenciar ou eliminar uma única figura — o rival transformado em inimigo supremo e desprezível.

Por isso, afirmar que estes tiroteios traem “quem somos” é esquecer que os próprios Estados Unidos foram fundados, e durante muito tempo sustentados, por esta mesma forma de violência política.

Violência revolucionária como teatro político

Os anos da Revolução Americana foram incubados na violência. Uma das práticas mais abomináveis aplicadas a adversários políticos era o “tarring and feathering” (alcatrão e penas), um castigo importado da Europa e popularizado no fim dos anos 1760 pelos Sons of Liberty, ativistas coloniais que resistiam ao domínio britânico.

Em cidades portuárias como Boston e Nova Iorque, multidões despiam os inimigos políticos, normalmente suspeitos de serem “lealistas” (defensores do domínio britânico) ou funcionários do rei, cobriam-nos com alcatrão quente, rolavam-nos em penas e exibiam-nos pelas ruas.

Os efeitos nos corpos eram devastadores. Ao retirar o alcatrão, pedaços de carne vinham agarrados. As vítimas sobreviviam, mas ficavam marcadas para toda a vida.

No final da década de 1770, a Revolução nas chamadas Colónias Intermédias tinha-se tornado uma guerra civil brutal. Em Nova Iorque e Nova Jérsia, milícias patriotas, guerrilheiros lealistas e tropas britânicas atravessavam os limites dos condados, atacando quintas e vizinhos.

Quando as forças patriotas capturavam irregulares lealistas, muitas vezes chamados “Tories” ou “refugees”, raramente os tratavam como prisioneiros de guerra: eram considerados traidores e executados de imediato, geralmente por enforcamento.

Em setembro de 1779, seis lealistas foram capturados perto de Hackensack, Nova Jérsia, e enforcados sem julgamento por uma milícia patriota.

De forma semelhante, em outubro de 1779, dois alegados espiões “Tories” capturados nas Hudson Highlands foram mortos a tiro no local, e a execução justificada como punição por traição.

Para os patriotas, estes assassinatos eram dissuasores; para os lealistas, eram homicídios. De qualquer forma, eram atos inequivocamente políticos, eliminando inimigos cujo “crime” era a lealdade ao lado errado.

Pistolas ao amanhecer: o duelo como política

Mesmo depois da independência, a política americana continuou a assentar numa lógica de violência contra os adversários.

Para os líderes nacionais, o duelo de pistola não se resumia à honra pessoal. Ele normalizava uma cultura política onde o próprio disparo era encarado como parte do debate.

O duelo mais famoso foi, naturalmente, o de Aaron Burr, que em 1804 matou o brilhante estadista, político e economista Alexander Hamilton, fundador do atual sistema financeiro dos EUA e, a par de Thomas Jefferson, um dos mais proeminentes Pais Fundadores dos Estados Unidos.

No trágico duelo que lhe tirou a vida, Hamilton, ingenuamente, atirou para o ar, como mandava a etiqueta. Burr, seu rival na política, disparou a matar. A vida do político norte-americano é retratada num premiado musical, que se encontra em cena na Broadway há 11 anos e está disponível em streaming na Disney+.

Mas dezenas de confrontos menos conhecidos pontuaram a década anterior.

Em 1798, Henry Brockholst Livingston, que mais tarde se tornaria juiz do Supremo Tribunal dos EUA, matou James Jones num duelo. Longe de ser descredibilizado, foi considerado como tendo agido de forma honrosa.

Na jovem república, até o homicídio podia ser absorvido pela política quando envolto em ritual. Ironicamente, Livingston tinha sobrevivido a uma tentativa de assassinato em 1785.

Em 1802, outro espetáculo vergonhoso ocorreu: os democratas-republicanos de Nova Iorque DeWitt Clinton e John Swartwout enfrentaram-se em Weehawken, Nova Jérsia. Dispararam pelo menos cinco vezes antes de os seus ajudantes intervirem, deixando ambos feridos.

Neste caso, o conflito nada tinha a ver com princípios políticos; ambos eram republicanos, mas com disputas de clientelismo. Ainda assim, acabou em tiros, mostrando como a violência armada estava normalizada como forma de resolver contendas.

É tentador descartar a violência política como um resquício de uma fase “primitiva” ou “fronteiriça” da história americana, quando os políticos e os seus apoiantes supostamente careciam de contenção ou de padrões morais mais elevados. Mas não é esse o caso.

Desde antes da Revolução, os castigos físicos, ou mesmo o homicídio, foram formas de impor pertença, de marcar a fronteira entre os de dentro e os de fora, e de decidir quem tinha o direito de governar.

A marca da violência na política dos EUA é também notória, como o ZAP aqui recordou há um ano, na longa lista de assassinatos ou tentativas de assassinato de presidentes norte-americanos.

Abraham Lincoln, James A. Garfield, William McKinley, John F. Kennedy: quatro presidentes norte-americanos foram assassinados. Franklin Roosevelt, Harry Truman, Ronald Reagan, Theodore Roosevelt, Gerald Ford, George W. Bush, e finalmente o atual presidente, na altura candidato Donald Trump: sete presidentes sobreviveram a tentativas de assassinato.

A violência nunca foi uma distorção da política americana. Foi uma das suas características recorrentes; não uma aberração, mas uma força persistente, destrutiva e, de certo modo, estranhamente criadora, produzindo novas fronteiras e novos regimes.

A dinâmica só se aprofundou com a expansão da posse de armas. No século XIX, a produção industrial de armamento e os contratos federais agressivos colocaram mais armas em circulação.

Os rituais de punição dos que tinham a lealdade “errada” passaram então a expressar-se no revólver de produção em massa e, mais tarde, na espingarda automática.

Estas armas mais modernas tornaram-se não apenas ferramentas práticas de guerra, crime ou autodefesa, mas também objetos simbólicos em si mesmas.

Incorporavam autoridade, transportavam significado cultural e davam aos seus portadores a sensação de que a própria legitimidade podia ser reclamada através do cano de uma arma.

É por isso que a frase “Isto não é quem somos” soa falsa. A violência política sempre fez parte da história da América, não como um desvio passageiro, não como um episódio isolado.

Negá-lo é deixar os americanos indefesos perante ela. Só enfrentando esta história de frente poderão começar a imaginar uma política que não seja definida pela arma, conclui Valsania.

ZAP //

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