A Rússia tem sido apontada como um exemplo de um dos poucos países que tem conseguido controlar a propagação da transmissão do novo coronavírus, pelo facto de apresentar pouco mais de 400 infectados (o que é obra num país de cerca de 145 milhões de habitantes). Mas há quem acredite que a realidade é outra.
O presidente Valdimir Putin tem garatido que a situação está “sob controle” na Rússia devido às medidas “agressivas” adoptadas pelo país. O governante insiste que os russos conseguiram conter a propagação do vírus e, por isso, manteve a agenda e os compromissos oficiais, como se nada fosse, continuando a contactar com aglomerados de gente e a trocar cumprimentos.
Mas nos últimos tempos, todos os que contactam com Putin, têm sido testados para ver se têm o vírus. É a BBC que o avança, salientando que todos os que contactam com Putin são analisados antes, para confirmar se têm ou não coronavírus. Terá sido o que aconteceu com os homens que foram condecoradas por Putin nesta semana, na Crimeia, bem como com os jornalistas acreditados e o staff do Kremlin, de acordo com a Rádio britânica.
O porta-voz presidencial, Dmitry Peskov, explica à BBC que este procedimento é “justificado para que o presidente possa continuar o seu trabalho com confiança“.
Assim, Putin não se inibiu de contactos, nem de dar apertos de mão, não se preocupando em manter o “distanciamento social” que os líderes europeus têm pedido a todos nos últimos dias.
Uma normalidade que Putin insiste em manter quando o número de casos continua a aumentar na Rússia, embora longe dos números de outros países com menor população. Uma circunstância que alguns analistas políticos atribuem ao desejo do presidente russo de terminar o processo que lhe vai permitir permanecer no poder para lá de 2024, ano em que termina o seu segundo mandato presidencial.
A Câmara baixa do Parlamento russo aprovou o projecto lei que pode permitir a Putin ficar no poder até 2036, quando terá 83 anos de idade. O presidente quer, contudo, que o povo se pronuncie sobre a lei e pretende promover uma votação nacional a 22 de Abril. Assim, estará a todo o custo tentar passar a ideia de que está tudo sob controle, embora a verdade possa não ser exactamente essa.
“Número de infectados é maior, mas quanto maior?”
Há cada vez mais vozes que questionam os números de infectados avançados oficialmente pela Rússia. Parece inverosímil que um país de 145 milhões de habitantes só tenha pouco mais de 400 casos de infectados, comparando, por exemplo, com países como Portugal que, com cerca de 10 milhões de habitantes, já tem mais de 2 mil casos, ou como o Luxemburgo, com apenas pouco mais de 600 mil habitantes, que tem mais de 600 infectados.
A Rússia tomou cedo algumas medidas que podem ter sido essenciais para estancar a propagação do vírus, nomeadamente encerrando as fronteiras com a China, logo a 30 de Janeiro passado, e barrando a entrada a todos os cidadãos chineses logo no início de Março. O país também definiu zonas de quarentena e começou a fazer testes em massa, além de ter procedido à identificação e isolamento dos infectados. Começou cedo também a fazer testes em aeroportos, nomeadamente a viajantes vindos de países como Irão, China e Coreia do Sul.
De acordo com os dados oficiais, a Rússia apresenta a segunda menor percentagem de casos do mundo, considerando que é o país que mais testes fez depois de China, Itália e Coreia do Sul, como aponta a ABC News.
“Tenho a certeza categórica de que há mais pacientes com coronavírus do que as autoridades estão a dizer”, acredita contudo a médica Anastasia Vasilyeva, líder da Aliança de Doutores, um grupo que luta por melhorias no sistema de saúde russo e que se posiciona ao lado de Alexey Navalny, figura da oposição a Putin.
Esta médica acusa as autoridades russas de estarem a esconder mortes causadas pela Covid-19, atribuindo-as a doenças como pneumonia e infecções respiratórias agudas.
“Eles disseram no primeiro paciente de coronavírus que morreu que a causa de morte foi uma trombose. É óbvio que ninguém morre do coronavírus em si, morre-se das complicações, por isso é muito fácil de manipular isto”, salienta Anastasia Vasilyeva em declarações à CNN.
Confrontado com os números, o professor Paul Hunter da Universidade britânica de East Anglia considera na ABC News que é uma percentagem “extraordinariamente baixa”, acrescentando que pode haver tanto “explicações suspeitas como não suspeitas” para a situação. Hunter frisa, contudo, que se sente tentado a dizer que “os dados são falsos com base apenas nos números”.
Já o político do partido comunista Alexey Kurinny, que integra a Comissão de Saúde do Parlamento russo, está certo de que “o número de todos os infectados é, sem sombra de dúvidas, maior”, conforme declarações divulgadas pela ABC News. A questão é “quanto maior? 2 vezes mais ou 10 vezes mais?“, questiona Kurinny.
Nos últimos dias, os novos casos têm crescido na ordem dos 50 por dia e avançou-se que há 36.540 pessoas sob vigilância.
Nas redes sociais, já surgiram rumores de que haveria mais de 20 mil infectados no país, algo que foi prontamente desmentido pelas autoridades.
Putin já veio desmentir qualquer encobrimento, assegurando que todos os dados divulgados pelo Ministério da Saúde “são informação objectiva”. Mas “as autoridades podem não ter a totalidade da informação porque as pessoas, às vezes, não reportam, ou não sabem que estão doentes, e o período de latência é muito longo”, refere o presidente russo.
Entretanto, há denúncias de que os testes usados pelos russos são menos eficazes na detecção do vírus por serem, alegadamente, “menos sensitivos” e poderem deixar passar como negativos casos de pessoas infectadas.
As suspeitas não têm apenas a ver com o facto de a Rússia ter estado envolvida, ao longo da História, na ocultação de factos verdadeiros, numa herança do secretismo da antiga União Soviética. Também há sinais que indiciam que a situação pode ser, afinal, mais grave do que aquilo que Putin quer fazer crer.
Por um lado, o país tem vindo a tomar medidas ainda mais apertadas, como o cancelamento de eventos públicos e o encerramento de escolas. Mas também começou a ser construído um hospital às portas de Moscovo para acolher pacientes de coronavírus e já se admite fechar a capital. O presidente da Câmara de Moscovo pediu aos residentes com mais de 65 anos e a quem sofre de doenças crónicas para não saírem de casa.