Uma reviravolta inesperada salvou o lince ibérico da extinção, revela ADN antigo

Programa de Conservación Ex-situ del Lince Ibérico www.lynxexsitu.es / wikimedia

Exemplar de Lynx pardinus, o lince Ibérico

Uma equipa de investigadores conseguiu pela primeira vez extrair com sucesso o ADN nuclear de três espécimes antigos de lince ibérico — e descobriu que a espécie poderá ter-se salvado da extinção porque se cruzou com o lince euro-asiático.

Muitos mamíferos de grande porte perderam a diversidade genética, muitas vezes graças às ações das pessoas que reduziram as suas populações.

As implicações podem ser graves porque, sem diversidade genética, uma população não tem uma “base de dados genética” à qual recorrer para se adaptar às alterações ambientais.

O lince ibérico (Lynx pardinus) não é alheio a esta redução da diversidade.

A atividade humana conduziu as populações a números perigosamente baixos, deixando-as com um património genético cada vez mais reduzido. Esta perda ameaça a capacidade de adaptação do lince a ambientes em mudança, pondo em risco a sua sobrevivência.

Um estudo recente, conduzido por Johanna L.A. Paijmans, Axel Barlow e José A. Godoy, e publicado na revista Nature, revela como o lince ibérico se cruzou com o seu primo, o lince euro-asiático (Lynx lynx), ao longo dos últimos milhares de anos.

Este cruzamento pode ter aumentado a diversidade genética do lince ibérico, explicam os autores do estudo num artigo no The Conversation.

Este é um fator crucial para a sua sobrevivência, especialmente quando a espécie enfrenta um futuro tão incerto.

Uma baixa diversidade genética pode conduzir a uma “depressão endogâmica“, em que animais com parentesco próximo se reproduzem e produzem descendentes menos aptos a sobreviver. Em casos extremos, esta situação pode levar populações inteiras, ou mesmo espécies, à beira da extinção.

Para aumentar a diversidade genética das populações à beira da extinção, os conservacionistas recorrem por vezes ao “salvamento genético”.

Isto envolve a introdução de indivíduos de populações diferentes na esperança de que se reproduzam com os animais locais, reduzindo a consanguinidade e aumentando a diversidade genética.

Embora esta estratégia possa ser eficaz, não é isenta de riscos.

A introdução de animais demasiado diferentes geneticamente pode perturbar ou diluir as caraterísticas benéficas, prejudicando potencialmente a capacidade de sobrevivência e reprodução da população. Trata-se de um fenómeno conhecido como “depressão por endogamia”.

Apesar destes riscos, o resgate genético continua a ser uma ferramenta valiosa na conservação, embora seja frequentemente abordado com cautela.

Um dos casos mais graves de redução da diversidade genética é o do lince ibérico, que já foi a espécie felina mais ameaçada do mundo. Encontra-se principalmente em partes de Espanha e Portugal.

Resgate e recuperação

Atualmente, o lince ibérico está a recuperar de uma situação de quase extinção. No censo de 2023, foram registadas mais de 400 fêmeas reprodutoras.

Trata-se de um enorme aumento em relação às apenas 25 registadas em 2002. Esta reviravolta deve-se, em grande parte, a um ambicioso programa de conservação ao longo das últimas duas décadas, que envolveu programas coordenados de reprodução e reintroduções.

Parte deste sucesso deve-se ao efeito de “salvamento genético”, em que a mistura das duas populações geneticamente distintas remanescentes ajudou a aumentar a diversidade genética da espécie. Apesar destes progressos, o lince ibérico continua a enfrentar desafios significativos.

A população está longe de atingir o mínimo de 1.100 fêmeas reprodutoras necessárias para ser considerada geneticamente viável. Assim, a sua diversidade genética continua a ser uma das mais baixas alguma vez registadas.

Um novo resgate genético poderia ser uma solução para aumentar a diversidade. Mas há um senão – não existem outras populações de lince ibérico no mundo que possam servir de fonte de novo material genético.

O ADN antigo pode ser extraído de restos históricos ou de amostras subfósseis (animais que não são suficientemente antigos para serem considerados verdadeiros fósseis, mas que também não são considerados modernos).

Ao estudá-los, os cientistas podem obter informações valiosas sobre o passado genético das espécies, oferecendo uma comparação rigorosa com os seus homólogos actuais.

Em 2015, Maria Lucena-Perez, também co-autora do estudo, visitou pela primeira vez o laboratório de outros dos co-autores, Michael Hofreiter, na Alemanha, para obter os primeiros dados sobre o genoma completo de ossos antigos de lince ibérico.

A extração de ADN antigo de ossos é um processo altamente especializado que requer instalações dedicadas a salas limpas para evitar a contaminação por ADN moderno.

Trabalhando em conjunto, a equipa conseguiu extrair com sucesso o ADN nuclear de três espécimes antigos de lince ibérico. Dois deles tinham aproximadamente 2.500 anos de idade. O terceiro datava de há mais de 4.000 anos.

Esta foi a primeira vez que o ADN nuclear foi extraído de um lince ibérico antigo. A proeza da equipa fez avançar significativamente a compreensão de como a composição genética do lince ibérico evoluiu ao longo de milhares de anos.

A equipa de investigadores analisou e comparou o ADN com o do lince ibérico moderno. Para surpresa dos cientistas, os linces antigos apresentavam uma diversidade genética ainda mais baixa do que os seus descendentes modernos.

Dado o declínio acentuado das suas populações ao longo dos últimos séculos, esta descoberta foi inesperada e intrigante.

Cruzamento de espécies

A peça que faltava no puzzle surgiu com a descoberta de que as populações modernas de lince ibérico partilham mais variantes genéticas com o lince euro-asiático, espécie aparentada, do que as suas congéneres antigas.

Isto sugere que as duas espécies se cruzaram com sucesso nos últimos 2.500 anos, aumentando a diversidade genética do lince ibérico atual.

Estas descobertas estão em consonância com a extensa evidência genómica de um fluxo genético antigo do lince euro-asiático para o genoma do lince ibérico. Embora as duas espécies não partilhem atualmente os mesmos habitats, coexistiram em tempos na Península Ibérica e, possivelmente, no sul de França e no norte de Itália.

Esta situação teria proporcionado muitas oportunidades de cruzamento.

A possibilidade de estas duas espécies se encontrarem naturalmente e se reproduzirem está a aumentar uma vez mais, à medida que as suas áreas de distribuição continuam a expandir-se. Este facto poderá abrir novas possibilidades de diversidade genética no futuro.

O advento da análise do genoma nuclear completo, nos últimos 30 anos, revelou numerosos casos de cruzamento de espécies, como entre os ursos polares e os ursos pardos. Isto sugere que o caso do lince não é assim tão invulgar.

Mas o lince ibérico destaca-se como o primeiro exemplo documentado em que a reprodução inter-espécies aumentou significativamente a diversidade genética de toda a espécie.

Os cientistas ainda não compreendem totalmente o efeito exato deste aumento genético, nomeadamente se melhorou a aptidão e a sobrevivência da população.

Uma possibilidade intrigante é que o lince ibérico tenha conseguido persistir apesar da sua diversidade genética extremamente baixa, graças a resgates genéticos recorrentes por parte do lince euro-asiático.

Esta investigação ofereceu assim um estudo de caso inesperado mas importante para uma discussão mais alargada sobre o resgate genético.

Se conseguirmos prever melhor as probabilidades de consanguinidade e de depressão exógena quando ocorre o cruzamento, poderemos utilizar o resgate genético de forma mais eficaz como ferramenta de conservação na atual crise da biodiversidade, concluem os investigadores.

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