Jonathan Romiguier / Nature

Um macho ‘M. ibericus’ (esquerda) em frente a um macho ‘M. structor’.
Uma espécie de formiga que vive no sul da Europa é o primeiro animal conhecido a produzir descendência de outra espécie. Segundo os cientistas, parecia uma piada ou algo saído da ficção científica, mas “era algo mesmo, mesmo, mesmo grande”.
As rainhas de formiga-ceifeira ibérica produzem machos clonados de uma espécie completamente diferente, rompendo com as regras conhecidas da biologia reprodutiva e sugerindo que pode ser necessário repensar os limites que definem as espécies.
As operárias das colónias desta espécie, Messor ibericus, são todas híbridas, sendo que as rainhas precisam de acasalar com machos de uma espécie distante, a Messor structor, para manter a colónia funcional.
No entanto, num novo estudo, publicado na semana passada na revista Nature, os investigadores descobriram que algumas populações de M. ibericus vivem em zonas onde não existem colónias de M. structor por perto.
“Isso era algo muito, muito anormal. Era quase um paradoxo”, afirmou à Live Science o biólogo evolutivo Jonathan Romiguier, da Universidade de Montpellier, coautor do estudo.
A equipa pensou inicialmente que se tratava de uma falha na recolha de amostras, mas acabou por identificar 69 regiões com esse padrão. “Fomos obrigados a encarar os factos e a tentar perceber se havia algo de especial nas colónias de Messor ibericus”, disse Romiguier.
Ao tentar resolver este enigma, a equipa descobriu que as rainhas de M. ibericus também põem ovos que dão origem a machos M. structor, sendo estes os que fecundam as operárias.
Esta é a primeira vez que se observa um animal de uma dada espécie capaz de produzir descendência de outra espécie como parte do seu ciclo de vida normal.
“No início, era quase uma piada dentro da equipa”, contou Romiguier. “Mas, à medida que os resultados iam surgindo, deixou de ser uma piada e começou a ser uma hipótese séria”.
Conjugados, todos estes resultados mostram que as rainhas de M. ibericus estão a clonar machos de M. structor, sem transmitirem qualquer ADN nuclear seu. Segundo Romiguier, o próximo passo é identificar o mecanismo exato que permite esta clonagem e descobrir em que momento o ADN materno é eliminado.
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As formigas são insetos eusociais, ou seja, vivem em colónias que funcionam como super-organismos cooperativos, compostos maioritariamente por fêmeas estéreis, as operárias, e por um pequeno número de fêmeas reprodutivas: as rainhas.
Os machos existem apenas para fecundar as rainhas durante o voo nupcial e morrem pouco depois. As rainhas acasalam apenas uma vez na vida e armazenam o esperma desse encontro num órgão especial, utilizando-o depois para pôr ovos que podem originar rainhas, operárias ou machos.
Contudo, quando as rainhas de M. ibericus acasalam com machos da sua própria espécie, só conseguem produzir novas rainhas.
Pensa-se que isto acontece devido a genes “egoístas” das rainhas, em que o ADN dos machos de M. ibericus garante a sua sobrevivência ao longo das gerações ao forçar as larvas a tornarem-se rainhas férteis em vez de operárias estéreis — um fenómeno conhecido como “fraude real”.
Para evitar isto, as rainhas precisam de usar esperma de machos M. structor para gerar as operárias. Foi por isso que a existência de colónias isoladas e saudáveis de M. ibericus parecia um verdadeiro enigma.
Para tentar encontrar respostas, os investigadores analisaram 132 machos de 26 colónias de M. ibericus, para verificar se havia machos de M. structor presentes.
Descobriram que 58 tinham o corpo coberto de pelos e 74 eram totalmente lisos. Uma análise genética ao genoma nuclear de alguns destes machos revelou que os espécimes peludos eram M. ibericus e os lisos eram M. structor.
Mas isto, por si só, não provava que as rainhas estavam a pôr ovos de machos de duas espécies diferentes; poderia haver algumas rainhas escondidas de M. structor a produzir esses machos.
Por isso, a equipa analisou o ADN mitocondrial (transmitido apenas pela mãe) de 24 desses machos de M. structor e descobriu que vinha da mesma mãe que os machos de M. ibericus da mesma colónia.
“Foi este pormenor que me fez pensar: ‘se calhar estamos perante algo mesmo, mesmo, mesmo grande’”, disse Romiguier.
De seguida, a equipa isolou 16 rainhas em laboratório e analisou geneticamente os ovos recém-postos; 9% desses ovos continham machos de M. structor. Depois, acompanharam semanalmente, durante 18 meses, uma rainha que foi diretamente observada a produzir machos das duas espécies.
Denis Fournier, biólogo evolutivo e ecólogo da Universidade Livre de Bruxelas, na Bélgica, que não participou no estudo, diz que quando a ouviu pela primeira vez, a descoberta parecia “quase ficção científica”.
“É de ficar de queixo caído! A maioria de nós aprende que os limites entre espécies são firmes, e aqui temos um sistema em que as formigas os ultrapassam regularmente como parte da sua vida normal”, disse à Live Science.
A equipa deu a este novo sistema reprodutivo o nome de “xenoparidade” — que significa “nascimento de uma espécie diferente”.
Romiguier afirmou que ainda não se sabe ao certo quando este sistema surgiu nas formigas-ceifeiras ibéricas, mas terá acontecido algures entre a separação evolutiva de M. ibericus e M. structor, há cerca de 5 milhões de anos.
“Agora que sabemos que um sistema destes é possível, é entusiasmante pensar que dados antigos e enigmáticos possam, de repente, começar a fazer sentido à luz desta descoberta”, concluiu Fournier.
Eventualmente, a surpreendente descoberta pode mesmo levar os cientistas a ter que redefinir o que é uma espécie.