Portugal vive uma situação de seca que as autoridades admitem ser a pior dos últimos 100 anos, cenário que tem levado o Governo a tomar medidas ao nível de apoios financeiros, monitorização e restrições no uso da água. A cientista Joana Portugal Pereira sugere adaptações e planos para vários cenários.
Segundo o Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA), citado este sábado pelo Jornal de Notícias, 67,9% do território português está em seca severa, 28,4% em seca extrema e 3,7% em seca moderada, sendo este o ano mais seco desde que há registos (1931). Mesmo nos meses do último inverno, todo o país esteve em seca.
Em janeiro deste ano, um agravamento muito significativo da situação de seca meteorológica deixou 1% do país em seca fraca, 54% em seca moderada, 34% em seca severa e 11% em seca extrema. Janeiro foi o sexto mês mais seco desde 1931 e o segundo mais seco desde 2000. Foi também o quinto mais quente desde 2000.
Devido ao cenário generalizado de seca, o Governo já havia tomado 78 medidas, entre condicionamentos de uso de água a soluções para disponibilizar água em territórios mais afetados. Este mês foram tomadas mais algumas, entre o reforço de albufeiras e o condicionamento do uso de água no setor turístico algarvio.
A 27 de junho o Governo reconheceu a existência de uma situação de seca severa e extrema agrometeorológica em todo o continente. Depois, em julho, informou que 31 albufeiras para fins múltiplos estavam em situação crítica, 10 com um volume estável e duas com uma maior redução de água em relação a junho.
Diversas localidades, de norte a sul do país, já estão a receber água para consumo por autotanques, e muitos municípios ativaram planos de gestão e fizeram campanhas de poupança de água.
O ministro do Ambiente e Ação Climática, Duarte Cordeiro, anunciou em junho que o Fundo Ambiental tem cinco milhões de euros para medidas imediatas de combate à seca. No final de junho, indicou igualmente que os portugueses vão ter de se habituar a viver com menos água, em todas as atividades.
Na Europa são os países do sul e do Mediterrâneo os que, segundo especialistas, mais vão ser afetados com falta de água devido às alterações climáticas.
País tem de se adaptar
Para a cientista Joana Portugal Pereira, investigadora e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, no Brasil, o país tem de se preparar antecipadamente para a adaptação às alterações climáticas, que estão e vão provocar períodos de seca, aconselhando cuidados com a água e mais árvores.
“É essencial implementar planos de adaptação às alterações climáticas setoriais e regionais que avaliem especificamente a vulnerabilidade a que estaremos expostos em diferentes cenários de aquecimento global (1.5ºC, 2ºC, 3ºC e 4ºC)”, alertou, em declarações à agência Lusa.
“No caso dos sistemas alimentares é relevante adotar práticas mais eficientes no uso de recursos hídricos e de reutilização de água no setor agroalimentar. É igualmente importante termos cadeias de abastecimento mais curtas para reduzir a vulnerabilidade do acesso a alimentos em casos de eventos extremos”, frisou.
E continuou: “a sombra é essencial” e pode ser conseguida com espécies autóctones, como o olival não intensivo, disse Joana Portugal Pereira, que é também autora do relatório do grupo de trabalho III em mitigação, do Painel Internacional para as Alterações Climáticas (IPCC na sigla original).
Diversificar é a palavra-chave na resiliência, apontou, explicando que para fazer face à seca “é preciso caminhar em várias frentes”, até porque cada solução pode ter entraves. Dessalinizar água do mar, por exemplo, é um processo muito intenso em consumo de energia.
Joana Portugal Pereira indicou que os últimos relatórios do IPCC mostram que é inequívoca a influência do aumento de emissões de gases de efeito estufa derivadas de atividades humanas no aquecimento global.
“O último boletim da Organização Meteorológica Mundial (WMO, na sigla original) afirma que o nível médio de aquecimento global é de +1.1°C (graus celsius) acima da temperatura verificada no período pré-industrial. Este aquecimento global reflete-se não apenas no aumento médio da temperatura, mas também na ocorrência de eventos extremos mais frequentes e severos, entre eles períodos de escassez hídrica mais longos e intensos”, acrescentou.
Num cenário de aumentos de temperatura global na ordem dos 03 ou 04ºC a região do Mediterrâneo pode ter em cada ano, adiantou a especialista, 14 a 17 dias de temperaturas acima de 40ºC. A região, admitiu, pode já ter um aumento médio da temperatura superior aos 1,1ºC.
A cientista não tem dúvidas de que, segundo os modelos climáticos, Portugal vai ter menos água. E alertou que associada à seca há uma aceleração da degradação do solo e dos ecossistemas terrestres, “afetando significativamente as atividades da agricultura” e a biodiversidade.
“Espera-se que a produtividade agrícola de cereais possa sofrer reduções e que ocorra também uma mudança no uso do solo e períodos do ciclo de colheita”, disse.
No último relatório do IPCC sobre mitigação climática “o nível de emissões de gases de efeito estufa (GEE) atingiu o nível máximo de 59 mil milhões (Giga) toneladas de CO2 equivalente. Este é um valor máximo. Contudo, o aumento das emissões na última década foi inferior ao verificado na década anterior entre 2000 e 2010”, notou.
De acordo com a especialista, há pelo menos 18 países que têm vindo a reduzir de forma consistente as emissões de GEE. Mas, acrescenta, disrupções como a pandemia de covid-19 ou a guerra na Ucrânia, podem atrasar o percurso positivo.
“Caminhamos no sentido correto mas lentamente. Sou uma otimista realista. Estamos muito aquém do que seria desejado mas há alguns anos estávamos muito mais próximos de cenários mais pessimistas”, disse, exemplificando com o último relatório do IPCC, que coloca como cenário mais pessimista um aumento das temperaturas de 3,5 a 04ºC, abaixo de relatórios anteriores. Ainda que melhor “não é um cenário bom”.
Joana Portugal Pereira explicou que, mesmo que hoje parassem as emissões de gases com efeito de estufa, o aquecimento global não se iria reverter.
A especialista, também autora do relatório sobre lacunas de emissões lançado pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (UNEP, na sigla original), referiu que “não faz sentido negar as alterações climáticas”, uma questão consensual junto de quase 100% dos cientistas.
E salientou logo a seguir a lacuna que existe entre as preocupações manifestadas pelas pessoas sobre as alterações climáticas e as suas ações para as minimizarem.
Está a falar dos portugueses, que continuam a ser dos que mais consomem produtos de origem animal, dos governos e das populações que não estão cientes do contributo das suas ações para as alterações climáticas, da necessidade de consumidores mais conscientes e de distribuidores mais sensíveis.
É uma questão que a preocupa. Mas, concluiu, “estamos em grandes avanços tecnológicos e comportamentais, temos conhecimento científico e sabemos as respostas. Temos agora é de superar uma série de inércias”.