PGR deixa recado ao Governo, presidente do STJ fala em questão “incrível”, Aguiar-Branco compara com o processo do novo aeroporto.
O procurador-geral da República criticou, na abertura do ano judicial, a falta de magistrados e de oficiais de justiça e de autonomia financeira da Procuradoria-Geral da República (PGR) e falou sobre o novo projeto de recuperação de ativos.
No seu discurso de estreia, que acontece praticamente três meses depois de tomar posse como procurador-geral da República, Amadeu Guerra foi claro ao avançar com aquilo que considerou ser necessário alterar num futuro próximo.
Sobre a autonomia financeira, Amadeu Guerra deixou um recado ao Governo, referindo que a PGR não obteve “ganhos significativos ao nível das tecnologias e sistemas de informação” através dos Fundos Comunitários.
“As verbas disponíveis foram concentradas, tanto quanto se sabe, no IGFEJ e na DGAJ” e, por isso, esclareceu Amadeu Guerra, a PGR depende “da boa vontade dessas entidades”, tuteladas pelo Ministério da Justiça.
Uma autonomia financeira permitiria, por isso, ao Ministério Público fazer “uma gestão mais rigorosa das verbas a atribuir e apostar, de forma integrada, em ferramentas mais rentáveis no domínio da informatização, tratamento da informação e digitalização”.
Aproveitando o protesto silencioso que decorre no exterior do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), convocado pelo Sindicato dos Funcionários Judiciais (SFJ), e à qual também aderiu o Sindicato dos Oficiais de Justiça (SOJ), Amadeu Guerra sublinhou que “o maior constrangimento com que se depara a administração da justiça é, neste momento, a carência de oficiais de justiça e a falta de motivação destes”.
Esta falta de trabalhadores nos tribunais de todo o país “limita, em muito e de forma significativa, a celeridade processual”. E o mais importante, acrescentou, é que mesmo o concurso de oficiais de justiça que está neste momento a decorrer e que pretende colocar 750 profissionais, não deverá ser suficiente para equilibrar as insuficiências.
A terminar o seu discurso, Amadeu Guerra fez ainda referência à estratégia de recuperação de ativos, já elaborada e disponível e que pretende “assegurar que é criada uma efetiva cultura de recuperação dos ativos para a criminalidade económico-financeira em Portugal”.
“Já reuni com o Diretor Nacional da Polícia Judiciária que se mostrou disponível e entusiasmado com a vontade de assegurar outra dinâmica ao Gabinete de Recuperação de Ativos (GRA)”, anunciou o procurador-geral da República.
Neste contexto, os bens recuperados devem ser vendidos o mais rápido possível, evitando assim que percam o seu valor, como acontece, por exemplo, com os carros apreendidos, que são colocados em armazéns durante vários anos.
O Senhor dos Anéis
O Presidente do Supremo Tribunal de Justiça defendeu uma “extensa reforma” da justiça, pediu alterações à lei que facilitem a entrada de novos magistrados e criticou a demora legislativa do parlamento para travar o envelhecimento de juízes.
O juiz conselheiro presidente, João Cura Mariano, propôs que os alunos universitários com notas mais elevadas nas licenciaturas e mestrados possam ser dispensados dos exames escritos requeridos no acesso à magistratura, mantendo-se a obrigatoriedade de provas orais.
Cura Mariano sugeriu que a alteração possa ser incluída na proposta de lei que vai alterar o regime de ingresso nas magistraturas, já aprovada na generalidade e que está agora a ser discutida na especialidade pelo parlamento.
“Era uma forma de atrair para a magistratura os alunos que, potencialmente, reúnem as melhores condições para o exercício de funções de tamanha responsabilidade, permitindo nas provas orais despistar os casos em que esses indícios de aptidão não se confirmassem. É, contudo, necessário que esta lei seja rapidamente aprovada, uma vez que um novo concurso de acesso às magistraturas deveria ter o seu início no mês de janeiro em curso”, disse o presidente do STJ.
Propõe ainda uma “minúscula alteração” ao Estatuto dos Magistrados Judiciais para inverter o ciclo de envelhecimento de quadros no STJ: “Ainda não entrou sequer no parlamento qualquer iniciativa legislativa, sem que eu consiga descortinar uma explicação para tal atraso, face à gravidade da situação”.
Sobre o envelhecimento dos juízes, tema sobre o qual tem deixado repetidos alertas, referiu que nos próximos seis anos se reformaram cerca de 600 magistrados, apontando que “atualmente, o número de juízes existentes já não é sequer suficiente para preencher os quadros existentes”, o que torna “necessário que nos próximos anos se reponha o número de juízes que se vão reformando, o que só se conseguirá com o ingresso e uma formação, de cerca de uma centena de novos juízes por ano”.
Para isso, o Centro de Estudos Judiciários (CEJ), que forma magistrados, deve ser dotado dos meios necessários.
Lembrando que tomou posse há menos de um ano, em junho, quando a justiça “estava na crista da onda discursiva, sob o signo da crise e da desconfiança e a sua reforma era um desígnio nacional prioritário”, mas que a onda acabou por se desfazer “na espuma dos dias”, João Cura Mariano defendeu que “após um longo período de inação, há uma extensa reforma por fazer”.
Insistiu na necessidade de rever o Código Penal e o Código de Processo Penal e manifestou o desejo que as comissões nomeadas para o efeito produzam resultados até ao final do ano, que permitam ter novas regras para “uma tramitação ágil dos processos judiciais”.
Mas admite que “estes novos tempos” devem levar a uma reflexão sobre que tipo de leis queremos ter: “minuciosas, tudo querendo prever e regular”, ou “deverão antes limitar-se a enunciar princípios, soluções gerais e linhas diretrizes, deixando para aqueles que as aplicam a sua adaptação às novas situações que constantemente a vida em sociedade vai colocando?”.
O presidente do STJ insistiu ainda que é fundamental resolver a questão da revisão do Estatuto dos Funcionários Judiciais para responder aos constrangimentos nos tribunais, uma questão que “incrivelmente, se arrasta desde há alguns anos”.
Cura Mariano apelou ainda à criação “de um verdadeiro serviço de assessoria” aos tribunais, à regulação da lei que há 25 anos atribuiu autonomia administrativa aos Tribunais da Relação – “apesar de o legislador ter concedido um generoso, mas inocente, prazo de 120 dias para esse efeito” – à autonomia financeira dos tribunais e a uma lei que defina o regime jurídico do tratamento dos dados referentes ao sistema judicial.
O presidente do STJ propôs-se a “colaborar ativamente” na resolução destas “principais enfermidades do sistema judiciário”, afirmando que a sua permanência lhe suscitam “inquietantes interrogações”.
“Como é possível tamanha inércia política? Como é possível este desinteresse pelas condições de exercício da função judicial? Como é possível tudo isto acontecer, ou melhor, nada acontecer?”, questionou o presidente do STJ, que citou a personagem da obra ‘O Senhor dos Anéis’, o sábio Gandaf, para afirmar “não nos é dado escolher o tempo em que vivemos, mas apenas o que fazer com os tempos em que nos foi dado viver”.
Remendos e côdeas
A ministra da Justiça defendeu que a reforma do setor não se faz de “grandiosos ‘planos estratégicos’” mas sim resolvendo os problemas “um a um” e declarou-se “uma aliada” dos funcionários judiciais, novamente em protesto.
“Eu sei o que fazer para que a Reforma da Justiça não tenha resultados: é fazer anúncios de grandiosos ‘planos estratégicos’. E também sei o que fazer para que Justiça seja reformada: resolver os problemas um a um, mesmo que não sejam imediatamente percetíveis para o cidadão”, disse a ministra da Justiça, Rita Alarcão Júdice.
À porta do STJ, como anunciado, centenas de funcionários judiciais manifestam-se em silêncio contra a proposta da tutela para revisão da carreira e valorização salarial, uma manifestação que não foi esquecida no discurso da ministra, que a considerou “uma forma democrática e legítima de protesto”, lembrando, no entanto, que “já tiveram provas da determinação e da boa-fé do Governo em resolver os problemas da classe nos últimos meses”, nomeadamente com um aumento de um suplemento salarial e o recrutamento de centenas de profissionais.
“Os funcionários judiciais sabem que têm na Ministra da Justiça uma aliada. Mas uma aliada não é alguém que distribui dinheiro público na proporção do ruído ou do número de notícias. É alguém que conhece o valor do seu trabalho, que move montanhas para que os Tribunais tenham computadores, sistemas informáticos, ar condicionado, segurança, elevadores, rampas de acesso, salas onde não chova”, disse.
O discurso de Rita Alarcão Júdice abriu lembrando Alcinda Cruz, a mulher que na semana passada foi notícia por ter sido vítima mortal de mais um crime de violência doméstica, morrendo à frente dos filhos, atacada pelo marido e depois de já ter apresentado queixa na polícia.
“Alcinda Cruz é a grande ausência e o grande silêncio nesta sala e nesta cerimónia”, disse a ministra.
“Na expressão ‘violência doméstica’ há sempre uma referência em falta que é ‘crime’, ‘crime de violência doméstica’. E quero chamar especial atenção para este facto, porque ‘as palavras são também ações’. Transcendem a comunicação, são capazes de moldar comportamentos”.
Esta parte do discurso originou, mais tarde, críticas de Eurico Reis. O juiz desembargador jubilado, que só assiste a estas cerimónias por “um masoquista dever de ofício”, disse que esta referência da ministra a mais um caso de violência doméstica “foi uma maneira muito clara de dizer (mas devia ter dito de uma forma mais elegante) que esta cerimónia é um ritual inconsequente, uma espécie de missa no mau sentido da palavra, da qual não resulta nada”.
Na RTP, Eurico Reis reforça a ideia de que o sistema da Justiça em Portugal está praticamente igual desde o 25 de Abril. “Andamos há 50 anos a funcionar com remendos e côdeas. Não há um pensamento estruturado na Justiça”.
Voltando ao discurso de Rita Júdice: “As vítimas de crimes devem ocupar um lugar cimeiro no sistema judicial. E não falo só das vítimas do crime de violência doméstica, mas das vítimas de todos os crimes contra as pessoas ou contra o património”, acrescentou.
Sobre isto, lembrou que este mês fica concluída a proposta de perda alargada de bens, no âmbito da agenda anticorrupção do Governo e que estão em estudo medidas para uma maior celeridade processual e combate a expedientes dilatórios, como a revisão da fase de instrução, reforço dos poderes dos juízes na gestão processual e alterações em matéria de recursos.
Rita Alarcão Júdice fez ainda um primeiro balanço da tramitação eletrónica do processo penal, que entrou em vigor há um mês e desmaterializou procedimentos, tendo sido feitas 22 mil notificações eletrónicas e poupados 238 dias de trabalho a oficiais de justiça.
Apontou ainda as medidas tomadas para reforçar o ingresso na magistratura de mais candidatos, como a criação de um novo polo de formação do Centro de Estudos Judiciários em Vila do Conde, alterações para permitir o acesso mais cedo ao STJ por parte dos juízes e assim rejuvenescer os seus quadros, um projeto para regular as assessorias nos tribunais, a revisão da tabela de honorários dos advogados oficiosos, em fase de conclusão e modernização tecnológica no âmbito do Programa de Recuperação e Resiliência (PRR).
“A política de justiça é definida pelo Governo. A gestão, a administração, os investimentos, a afetação de recursos, as prioridades legislativas e orçamentais cabem a quem foi eleito para governar, sujeitando-se ao debate, à discórdia, à negociação e ao escrutínio final dos eleitores. O Ministério da Justiça exerce as suas competências, toma as decisões que lhe parecem mais adequadas e sujeita-se ao escrutínio técnico e político. É uma das regras do jogo democrático: decisores políticos gerem os recursos públicos e são avaliados, politicamente, pelo mérito das suas decisões. Aos tribunais o que é da aplicação da Justiça, ao Governo o que é da Política de Justiça”, disse.
O tempo foge
O Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, pediu convergência entre atores políticos e judiciários para mudanças na justiça, considerando que se vive um novo ciclo, com novas lideranças, que constitui uma oportunidade única.
Marcelo apontou duas possibilidades, “a ambição de um pacto de justiça”, como propôs no início do seu primeiro mandato, ou “de passos mais pequenos e por áreas de maior urgência de intervenção”.
O chefe de Estado questionou “qual será a decisão dos protagonistas políticos e judiciários” e “quem tomará a iniciativa neste novo ciclo”, se os protagonistas judiciários ou os partidos políticos representados na Assembleia da República e no Governo.
Segundo Marcelo Rebelo de Sousa, “uma e outra conhecem virtualidades e limitações, pelo que o diálogo e convergência entre ambas se afigura ser porventura a via mais promissora”.
No fim da sua intervenção, o Presidente da República afirmou que “o tempo foge e convida a que a Assembleia da República, Governo e protagonistas judiciários não desperdicem esse tempo” e defendeu que se trata de um “imperativo nacional” e até de “uma exigência nacional”.
“Se assim for, ganham todos os intervenientes, e ganham sobretudo aqueles que são a razão de ser da ação política: os portugueses. Ninguém ganha, porém, com atraso após atraso“, acrescentou.
O chefe de Estado invocou todos aqueles que “esperam, espera após espera, tempo após tempo, e que acreditam que este novo ciclo oferece possibilidades únicas de concretização da mudança na justiça”, e pela sua parte manifestou “uma esperança reforçada” de que isso venha a acontecer.
O aeroporto
O presidente da Assembleia da República anunciou que vai reunir em fevereiro, no parlamento, os diferentes agentes do sistema judicial para encontrar pontos de convergência sobre dez medidas base que lancem “uma revolução cultural” no setor.
“Se o problema é dar o primeiro passo” para uma reforma da justiça, “permitam-me que seja eu a fazê-lo”, declarou José Pedro Aguiar-Branco.
Um discurso em que especificou duas áreas em concreto que podem ser objeto de consenso após essa reunião de trabalho: a digitalização e a revisão dos prazos para a prática de atos processuais.
Na sua intervenção, o antigo ministro social-democrata da Justiça e da Defesa referiu que falou recentemente com o presidente do Supremo Tribunal, João Cura Mariano, para juntos convocarem uma reunião de trabalho sobre o futuro da justiça.
“Poderíamos chamar-lhe muitas coisas, conferência, debate, Estados Gerais ou até cimeira da justiça, mas a justiça não precisa de mais conferências, nem de encontros. A oferta já é muita e o `marketing´ é o menos relevante. Aquilo que a justiça precisa mesmo é de uma reunião de trabalho – e é isso que faremos, já no mês de fevereiro, na Sala do Senado”, disse.
Nessa reunião de trabalho, segundo José Pedro Aguiar-Branco, serão convidados representantes dos diferentes agentes do sistema judicial e também os grupos parlamentares, pretendendo-se que seja um momento para se encontrarem pontos de convergência.
“Gostava que, desta reunião de trabalho, pudéssemos extrair dez propostas simples, dez mudanças com as quais todos concordamos e que possam servir de base para uma revolução cultural na Justiça”, salientou.
O presidente da Assembleia da República terminou o discurso com ironia – e de forma aérea: “A reforma da Justiça é uma promessa política mais antiga do que o novo aeroporto de Lisboa. No ano passado, o projeto do aeroporto já deu alguns passos. Espero que, em 2025, a reforma da Justiça também possa descolar”.
ZAP // Lusa