Não gostava de respostas — e muito menos da ideia de se esquecer de uma ideia. Cineasta tinha sido diagnosticado com um enfisema há seis meses. “A pessoa mais viva” morreu aos 78 anos.
O cineasta norte-americano David Lynch, realizador de “Um coração selvagem”, “Veludo Azul” e da versão de 1984 de “Dune”, morreu esta quinta-feira, aos 78 anos, anunciou a família, na página oficial de Facebook do vencedor da Palma de Ouro de Cannes em 1990.
“É com profundo pesar que nós, a sua família, anunciamos a morte do homem e do artista David Lynch”, lê-se na mensagem, que apela a “alguma privacidade nesta altura”.
“Há um grande vazio no mundo agora que ele já não está entre nós. Mas, como ele diria, ‘mantém os olhos no donut e não no buraco'”, prossegue a mensagem, que conclui: “Está um dia lindo, com sol dourado e céu azul por todo o lado”.
“O seu nome tornou-se um adjetivo”
“Tal como Frank Capra e Franz Kafka, dois artistas do século XX muito díspares, cujo trabalho Lynch admirava muito e que se pode considerar como tendo sintetizado, o seu nome tornou-se um adjetivo“, escreve o crítico J. Hoberman, no New York Times, citando a monografia “David Lynch: The Man From Another Place” (“David Lynch: O Homem de Outro Lugar”), de Dennis Lim.
“O Lynchiano é ao mesmo tempo fácil de reconhecer e difícil de definir […]. Os filmes de Lynch caracterizavam-se pelas suas imagens oníricas e design sonoro meticuloso, bem como pelas narrativas maniqueístas que colocavam uma inocência exagerada, até mesmo açucarada, contra o mal depravado”.
“A pessoa mais viva que conheci”
O ator norte-americano Kyle MacLachlan, que protagonizou a série “Twin Peaks” de Lynch, reagiu à morte do cineasta afirmando que deve toda a sua carreira à visão do realizador, “a pessoa mais autenticamente viva” que conheceu.
Numa homenagem publicada na quinta-feira na sua conta oficial no Instagram, MacLachlan recorda como Lynch o tirou “da obscuridade para protagonizar o seu primeiro e último filme de grande orçamento”, “Blue Velvet”, “por razões que ultrapassam” a compreensão do ator: “ele viu claramente algo em mim que nem eu reconheci. Devo toda a minha carreira, e na verdade a minha vida, à sua visão”.
Kyle MacLachlan define Lynch como “um homem enigmático e intuitivo, com um oceano criativo a explodir dentro dele“, alguém que “estava em contacto com algo que todos nós gostaríamos de ter alcançado”.
“A nossa amizade floresceu em ‘Blue Velvet’ e depois em ‘Twin Peaks’, e sempre o achei a pessoa mais autenticamente viva que já conheci”, prossegue o ator, acrescentando: “o David estava em sintonia com o universo e com a sua própria imaginação a um nível que parecia ser a melhor versão do ser humano. Não estava interessado em respostas porque entendia que as perguntas são o que nos impulsiona a ser quem somos. São a nossa respiração”.
“Enquanto o mundo perdeu um artista notável, eu perdi um querido amigo que imaginou um futuro para mim e me permitiu viajar por mundos que nunca poderia ter concebido sozinho”, reconhece o ator.
“Sentirei mais a sua falta do que os limites da minha linguagem podem expressar e do que o meu coração pode suportar”, prossegue MacLachlan, garantindo que o seu “mundo está muito mais completo”, porque conheceu David Lynch, “e muito mais vazio, agora que ele partiu”.
“Lá se vai o Willy Wonka do cinema“, disse a atriz Lara Flynn Boyle em declaração ao Deadline: “Sinto que ganhei um bilhete dourado ao ter a oportunidade de trabalhar com ele. Sentiremos muito a sua falta”.
Lynch “foi corajoso, brilhante e um dissidente com um grande sentido de humor”, recordou Nicolas Cage, que contracenou com Laura Dern em Coração Selvagem: “era um génio singular no cinema e um dos maiores artistas deste ou de qualquer outro tempo”, disse sobre o realizador que não suportava a ideia de se esquecer de uma ideia.
“Se te esqueces de uma ideia boa, queres cometer suicídio”, disse várias vezes ao longo da carreira.
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Enfisema impediu-o de continuar
David Lynch esteve em Portugal em 2007, quando foi homenageado com uma retrospetiva na primeira edição do atual Lisbon Film Festival (Leffest), do produtor Paulo Branco. Na altura, Lynch aproveitou para fazer uma conferência sobre meditação transcendental, uma técnica que pratica desde os anos 1970 e que o levou a criar uma fundação.
“Eu era uma pessoa afetada pela depressão e pela raiva. Com a meditação consegui ultrapassar emoções negativas como o medo e a ira, libertei a minha consciência, e a criatividade começou a fluir”, descreveu na altura aos jornalistas.
De acordo com a revista Variety, Lynch revelou no ano passado que lhe tinha sido diagnosticado um enfisema após uma vida inteira de tabagismo o que o impediria de continuar a sair de casa para realizar filmes.
Em 2017, o realizador já tinha anunciado a sua retirada do cinema devido ao estado atual da indústria: “os tempos mudaram imenso nos últimos 11 anos, inclusive a maneira como as pessoas percebem os filmes”, disse na altura em entrevista entrevista ao jornal Sydney Morning Herald.
Talento precoce para as artes
O criador da série “Twin Peaks” nasceu em 20 de janeiro de 1946, em Missoula, Montana, nos Estados Unidos. Mudou-se frequentemente com a família quando era criança. Tinha um talento precoce para as artes visuais e uma paixão por viagens e descobertas que o levaram a matricular-se na Academia de Belas Artes da Pensilvânia e a encetar o caminho no cinema como produtor de curtas-metragens.
Desde a década de 1960, estendeu também a prática artística à música, à pintura, ao vídeo experimental e à fotografia. Mas o seu trabalho foi sobretudo reconhecido em cinema e televisão, em particular a partir de “Eraserhead” (1977), origem da linguagem particular do cineasta, e de filmes que se sucederam como “O homem elefante” (1980), um do seus primeiros sucessos de grande dimensão, sem ceder aos parâmetros comerciais de Hollywood, “Duna” (1984), na altura um fracasso comercial que acabou por criar o seu próprio culto, e “Veludo azul” (1986), o ‘thriller’ para lá das cercas brancas das pequenas cidades americanas de que “Twin Peaks” se prefigura como um “‘spin off’ espiritual”, como hoje escreve o jornal The New York Times, com o suspense sobre a morte de Laura Palmer a dominar os episódios originais de 1991-92.
Nos anos seguintes aconteceriam filmes como “Um coração selvagem” (1989), palma de ouro no Festival de Cannes de 1990, “Lost highway: Estrada perdida” (1997) e “Mulholland Drive” (2001), a obra-prima que o New York Times definiu como “um venenoso cartão de visita para Hollywood”, e a derradeira longa-metragem, “Inland Empire” (2006).
As suas produções misturam elementos de terror, filme noir, policial, vão buscar elementos ao surrealismo europeu, mas também são capazes da mais depojada linha narrativa como aconteceu com “Uma História Simples” (1999).
O “palmarés”
Em Cannes, David Lynch conquistou a Palma de Ouro em 1990, com “Um coração selvagem”, e o prémio de melhor realizador em 2001, com “Mulholland Drive”. O Festival de Veneza deu-lhe o Leão de Ouro de carreira em 2006.
Nunca ganhou um Óscar da Academia, mas recebeu nomeações por “O Homem Elefante”, “Veludo Azul” e “Mulholland Drive”. Em 2019, recebeu um Óscar honorário pelo conjunto da obra.
A sua autobiografia, “Room to dream” (“Espaço para sonhar”), co escrita com Kristine McKenna, foi publicada em Portugal pela Elsinore, em 2018.
A Casa do Cinema, em Coimbra, tem em curso um ciclo dedicado ao cinema de David Lynch, que se vai prolongar até ao próximo dia 23, e que inclui filmes como “Eraserhead”, “O Homem Elefante”, “Uma História Simples” e “Inland Empire” (2006).
“The Fabelmans”, de Steven Spielberg, deu a David Lynch a derradeira aparição no cinema, aqui como ator, assumindo o papel de John Ford, o realizador de “A Desaparecida” e “O Homem Tranquilo”.
ZAP // Lusa