A Mitra, o armazém onde o Estado Novo escondeu 20 mil mal-amados portugueses

Museu do Aljube

Albergue da Mitra, Lisboa, maio de 1946

Ficava na Marvila, junto ao Poço do Bispo, e era o destino de milhares de pedintes, prostitutas, dementes e deficientes motores no tempo do Estado Novo.

O que hoje não passa de um termo usado como insulto, com a mesma intenção de quem chama pobre, “penetra”, marginal ou “guna”, “Mitra” era antigamente o espaço dos mal-amados dos armazéns de uma antiga fábrica de cortiça.

A origem do espaço remonta a 1566, quando a Quinta da Mitra foi aforada perpetuamente ao Morgado do Esporão. No início do século XVII, parte da propriedade regressou à Mitra, passando a ser usada como quinta de recreio. No segundo quartel do século XVIII, o Cardeal Patriarca de Lisboa recuperou o palácio devoluto e transformou-o num sumptuoso edifício barroco com cais privativo. A zona, entre a Madre Deus e o Poço do Bispo, notava-se pelos palácios e conventos.

Sucessivas vendas marcaram a história do palácio. Em 1864 foi adquirido pelo Marquês de Salamanca e, dez anos depois, por Horatius Justus Perry, diplomata norte-americano casado com a poetisa Carolina Coronado. Após várias mudanças de proprietário, o espaço foi comprado em 1902 por António Centeno, permanecendo na posse da família até 1911.

O Asilo da Mitra, um depósito humano

“Urge pôr termo a semelhante abominação” escrevia O Século, a 10 de outubro de 1932, citado pelo Expresso. o jornal referia-se à “abundância de crianças de todas as idades, esmolando e vadiando” em Lisboa, um ano depois de ter sido criminalizada a mendicidade em Portugal, com ordem para “repressão nas ruas e lugares públicos” para imprimir à sociedade “um aspeto de limpeza moral”.

Condizente com a narrativa, no século XX, a propriedade da Mitra teve um novo destino. Em 1930, depois de ter sido adaptada para a Fábrica Seixas, de fundição e metalurgia, foi adquirida pela Câmara Municipal de Lisboa por 4.000 contos, inicialmente para instalar um matadouro. A ideia não avançou e parte do espaço foi usada para a estação de limpeza oriental, enquanto os antigos barracões deram lugar ao Asilo da Mitra.

O asilo, inaugurado a 4 de maio de 1933, foi criado pelo coronel Lopes Mateus e era considerado, na época, uma instituição modelar — acolhia cerca de 1.300 pessoas de ambos os sexos. Funcionava sob tutela da Polícia de Segurança Pública (PSP), que recolhia mendigos da via pública para triagem e encaminhamento. Em teoria, os internados deveriam ser enviados para instituições adequadas, mas a falta de resposta das estruturas do Estado levou a que muitos ficassem retidos sem data para sair naquela “prisão”, sem terem cometido qualquer crime.

Adultos podiam sair mediante pagamento de multa ou fuga, mas crianças, idosos sem família, doentes crónicos e doentes psiquiátricos acabavam por permanecer no espaço sem tratamento adequado — era, no fundo, um depósito humano.

O que aconteceu à Mitra

Na década de 1950, a “Mitra” passou a dedicar-se sobretudo a doentes psiquiátricos incuráveis, funcionando como equipamento de retaguarda entre 1952 e 1974. Só os casos considerados tratáveis eram enviados para os hospitais psiquiátricos de referência, como o Júlio de Matos ou o Miguel Bombarda.

A 31 de maio de 1977, o Albergue Distrital de Mendicidade foi extinto e colocado sob tutela da Secretaria de Estado dos Assuntos Sociais. No ano seguinte, passou a designar-se Centro de Apoio Social de Lisboa, com duas valências: Centro de Terceira Idade e serviço de acolhimento e triagem para encaminhamento para instituições especializadas.

O século XXI trouxe uma nova etapa. Em 2014, a Câmara Municipal de Lisboa cedeu o espaço à Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, que iniciou um projeto de restauro e preservação. O objetivo foi eliminar o estigma associado à mendicidade e criar um equipamento moderno. O espaço passou a designar-se “Lisboa Social Mitra”.

Hoje, a “Mitra” é composta por dois edifícios de valor patrimonial: o palácio barroco do primeiro Patriarca de Lisboa, usado como salão nobre pela autarquia, e o antigo asilo, reabilitado pela Santa Casa.

ZAP //

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