Menos metas temporais, mais abrangência e ónus em Bruxelas. Assim é o programa do Governo

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Mário Cruz / Lusa

Especialistas apontam a maioria absoluta, a estratégia eleitoral e até a conjuntura incerta da guerra para a abordagem seguida pelo Governo no seu programa.

Desde que Ana Catarina Mendes entregou, na última sexta-feira, o programa do XXIII Governo Constitucional a Augusto Santos Silva, presidente da Assembleia da República muitas têm sido as críticas feitas pelos restantes partidos e comentadores televisivos. As acusações dizem sobretudo respeito à “falta de ambição” — nas palavras de Marques Mendes — mas também ao cariz “vago” do documento.

Esta foi uma das constatações feitas pelos especialistas ouvidos pelo jornal Público, que usam também expressões como “ambíguo” e “pouco claro“. No cerne da questão parece estar, por exemplo, a ausência de metas temporais para a concretização de medidas, também elas por especificar em alguns casos. Em vez disso, podem ler-se intenções como “fomenta“, “incentivar“, “concretizar” ou “promover”, apesar de não serem acompanhadas de datas de execução ou metas qualificadas, descreve a mesma fonte.

Ricardo Paes Mamede, professor de Economia Política no ISCTE, apontou, como possível justificação para esta abordagem, a inexistência de acordos parlamentares ou outro tipo de compromissos com parceiros, tal como aconteceu em 2015, por exemplo. Nesse contexto, em que um dos grandes objetivos do Partido Socialista era reverter as políticas do tempo da troika, muitas das medidas acordadas com PCP, BE e PEV ficaram delineadas por escrito e com prazo para a sua implementação.

Atualmente, com maioria absoluta, e num contexto de guerra, marcado pela imprevisibilidade, parece haver mais flexibilidade e capacidade de adaptação. Ainda segundo o jornal Público, as medidas destinadas ao ano de 2023, o próximo, não ultrapassam as dez referências. O especialista aponta ainda que dados os recentes acontecimentos pode haver uma maior urgência em trabalhar mais nas respostas propriamente ditas e menos numa versão elaborada do programa de Governo.

Uma análise alternativa terá que ver com a estratégia “catch-all party” que o especialista entende ter sido praticada pelo PS nas últimas legislativas e cujo objetivo era chegar à maior fatia possível do eleitorado. Como tal, não seria do interesse dos socialistas especificar as políticas que pretendia implementar, de forma a não afastar possíveis votantes. No entanto, entende que nesta fase seria importante que tal aprofundamento existisse, nomeadamente na área da Educação e da Justiça.

Outro dos especialistas ouvidos, Paulo Trigo Pereira, professor do ISEG, perito em finanças públicas mas também antigo deputado nas listas do PS, sublinha que, por exemplo, o documento relativo a esta legislatura não inclui um programa macroeconómico, que em 2015 havia sido considerado. “Havia uma série de medidas que tinham o seu impacto orçamental quantificado“, o que permitia uma “certa visão do conjunto”. Também na área da Defesa o economista entende que os compromissos assumidos são “ambíguos”.

Catarina Santos Botelho, professora de Direito Constitucional na Faculdade de Direito da Universidade Católica, refere que no artigo 188.º da Constituição é estabelecido que no programa do Governo devem constar “as principais orientações políticas e medidas a adotar ou a propor nos diversos domínios da atividade governamental”. No entanto, ressalva, não há qualquer exigência quanto ao modelo concreto que deve ser apresentado por cada Executivo e ao nível de especificidade das medidas.

O que dizem os partidos?

Quando António Costa chegar à Assembleia da República para defender o Programa de Governo, já terá a garantias de uma moção de rejeição, anunciada pelo Chega. Não será certamente algo que lhe tire o sono — a maioria absoluta dá-lhe obviamente garantias de que o documento será aprovado. No entanto, as críticas fazem-se ouvir de vários quadrantes políticos e alguma podem colidir com promessas que António Costa deixou no passado.

Ontem, Catarina Martins, em conferência de imprensa, destacou a falta de respostas para a inflação causada pelos efeitos da Guerra na Ucrânia — tendo apresentado propostas alternativas. Do Bloco de Esquerda surgem também críticas deixadas por Francisco Louça, que, em entrevista ao Expresso, fala em “arrogância da maioria absoluta” para a ausência de soluções no programa do Governo. “não o quis fazer [adaptar o programa à atual conjuntura] porque, confortado numa maioria absoluta, acha que é indiferente o que possam dizer sobre o refrão. E canta o refrão”.

O Livre também destacou a importância que a guerra na Ucrânia tem a nível económico para o país e destacou a falta de medidas e respostas para tais problemas no programa do Governo. “Há medidas que deviam ter sido incluídas“, disse Rui Tavares no dia em que o documento foi entregue.

As críticas do PCP também foram uma constante nos últimos dias, apesar de o partido se ter destacado na apresentação de propostas para, precisamente, tentar contornar as consequências da guerra na Ucrânia — sem evocar tal motivo, ainda assim. Entre as propostas apresentadas, algumas visam assegurar o aumento da produção de cereais, um plano estratégico para a soberania alimentar nacional, a fixação de um prelo de referência para os combustíveis para combater a especulação e descida do IVA da eletricidade.

Apesar destas críticas, Ana Catarina Mendes referiu, aquando da entrega do documento que o Governo se esforçou por promover um “reajustamento” do programa para dar resposta às mudanças do mundo nas últimas semanas. No entanto, nota o Expresso, sempre que o dito “reajustamento” é referido no programa de Governo, as soluções são encaminhadas para medidas que Bruxelas possa vir a decidir.

Na apresentação do documento, Mariana Vieira da Silva admitiu a possibilidade de serem necessárias novas medidas, as quais podem ter um cariz extraordinário ou ser incluídas no Orçamento do Estado para 2022. “Portugal já tomou medidas significativas na área da energia e apoio às famílias, mas a evolução da situação, a sua duração e a forma como a evolui implicarão certamente novas medidas”, ressalvou a número dois do Governo.

Que medidas se podem esperar?

No que respeita às medidas propriamente ditas — sobretudo as que são especificadas — pode antever-se o crescimento da utilização do teletrabalho, nomeadamente na Administração Pública, com o objetivo, por exemplo, de combater a desertificação do interior. O governo parece, de facto, apostado em promover a mobilidade dos funcionários públicos. Ainda em matérias de trabalho, uma das novidades introduzidas tem que ver com a “semana de quatro dias“, conceito que tem sido testai noutros dias e que poderá ser discutido em sede de concertação social.

O objetivo é promover “novas formas de gestão e equilíbrio dos tempos de trabalho”. Neste mesmo âmbito, o governo reserva para as famílias, com foco na natalidade, melhores condições no que respeita ao IRS. Como tal, está previsto um aumento das deduções fiscais em função do número de filhos e um reforço do abono de família. Segundo a CNN, todas as famílias devem receber, através do pagamento do abono ou por deduções no IRS, 600 euros anuais por criança ou jovem — valor que pode subir para os 1200 euros nos casos de crianças em contextos de pobreza extrema.

Também virada para as famílias está a intenção de alargar a rede de creches com 20 mil novos lugares, com a meta de que o serviço se torne gratuito até 2024.

Na educação, o executivo de António Costa também fez de uma das suas prioridades a “recuperação das aprendizagens comprometidas pelas dificuldades que se verificaram na pandemia”. Quanto ao ensino superior, o objetivo é “continuar a aumentar os apoios sociais aos estudantes“, tendo em vista a desburocratizar o sistema. O alojamento destinado aos estudantes do ensino superior também será reabilitado com 15 mil novas camas.

Outra das bandeiras do Orçamento do Estado para 2022 e que está naturalmente presente no Programa do Governo tem que ver com a revisão dos escalões do IRS, no qual o Governo prometeu uma “redução progressiva das taxas para todos os que venham a beneficiar dos aumentos de rendimento“. No que respeita ao salário mínimo, o executivo quer fazer dele um indicador estrutural, com aumentos anuais que devem ir até aos 900 euros até 2026.

O documento dedica algumas medidas ainda à precariedade, com salários baixos e os trabalhos temporários a serem problemas que o Governo pretende resolver, nomeadamente através da regulação trabalho temporário.

Na saúde, a aposta do Governo é numa “lei de emergência em saúde pública” para responder de forma pronta e adequada a qualquer problema que possa surgir com a dimensão da covid-19. Estão também previstas contratações de médicos e enfermeiros e novas infraestruturas: seis novos hospitais e 30 unidades de saúde moveis. A muito badalada promessa de atribuição de médico de família a cada cidadão deverá ser concretizada no final da legislatura, ou seja, em 2026.

De acordo com o Governo, nesse ano, as unidades de saúde familiar — que substituíram os centros de saúde — deverão cobrir 80% da população na próxima legislatura. No entanto, tal não significa que 20% dos portugueses fiquem sem médico de família, apenas que esse profissional vai ficar longe para muitos. Outras preocupações do Governo dizem respeito a áreas que muitas vezes não são consideradas no SNS: saúde mental, oral, visual e nutrição.

A nova legislatura poderá trazer também um referendo, desta feita sobre a regionalização. A previsão é que este aconteça em 2024, desde que sejam criadas condições para tal neste prazo. Para já, pouco se sabe sobre a medida e o seu avanço, que estão dependentes de quem venha a ser eleito presidente do PSD.

ARM, ZAP //

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