Entre a liberdade de expressão e o crime público, entre o discurso ao ódio e o ódio ao discurso

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António Cotrim / Lusa

O SOS Racismo associou-se a outras organizações para transformar em crime público a discriminação e incitamento ao ódio e à violência, uma iniciativa cidadã que pretende alargar a esfera do artigo do Código Penal. Mas nem todos concordam com o ódio ao discurso, porque no racismo “há coisas leves”.

Atualmente, só é crime, segundo o Código Penal, quando o autor utiliza um “meio destinado à divulgação” o que, para a dirigente do SOS Racismo Joana Cabral, é “muito pouco consequente”, porque “há atos em contexto pessoal” que devem ser considerados criminais.

“O discurso de ódio deve ser crime sempre“, independentemente “do meio em que é expresso”, afirmou a dirigente, criticando o facto de, nalguns casos, a legislação contemplar apenas contraordenações.

Falando à Lusa por ocasião do Dia Internacional de Combate ao Discurso de Ódio, que se comemora na terça-feira, Joana Cabral considerou que o “enquadramento legal atual não é suficientemente consequente do ponto de vista da aplicação” de penas efetivas.

Nesse sentido, o SOS Racismo está “envolvido numa iniciativa legislativa cidadã que pretende precisamente atuar do ponto de vista do discurso de ódio, com um enquadramento mais eficaz e mais dissuasor” que “não pode estar apenas ao nível da contraordenação” em muitos casos ou sujeito a queixas particulares, já que se trata, atualmente, de um crime semipúblico.

“O que vamos percebendo é que, muitas vezes, a penalização dos comportamentos de ódio, de racismo, de xenofobia e que incluem o discurso de ódio online não têm consequências que sejam dissuasoras para o futuro”, acrescentou, admitindo que esta proposta pode ser vista pelos críticos como um ataque à liberdade individual, algo que nega.

“Nós levamos muito a sério a liberdade de expressão, ela é muito necessária, precisamos dela não só para podermos viver com liberdade, mas também porque essa liberdade protege a democracia, protege direitos e a possibilidade de haver contraditório”, disse Joana Cabral.

No entanto, “nenhum direito, a não ser o direito à vida, é absoluto e os direitos têm que conviver dentro de uma sociedade”, porque a liberdade de expressão “não pode agredir o Outro” e utilizar um “discurso tão ofensivo que atenta contra dignidade e contra a saúde mental” das vítimas.

Por outro lado, a regulação desta matéria permite “desmontar aquilo que pode ser a fabricação de notícias falsas de desinformação, porque também isso é um atentado à democracia”, acrescentou.

Nesta questão, “há conflitos entre direitos” e “qual é que vale mais? questionou Joana Cabral, respondendo logo de seguida: “não podemos priorizar apenas o direito que as pessoas têm de expressar a sua liberdade”, mas também “temos de proteger os direitos de quem é atingido”.

Por outro lado, caso não seja controlado, o “discurso de ódio contamina o clima social e a conflitualidade entre os grupos”, pelo que a lei deve prever sempre um papel de dissuasor de futuros comportamentos.

Os insultos online contra minorias, comportamentos sexuais ou etnias “tendem a ter uma normalização fora da rede”, que podem terminar em “atitudes que são muito violentas” na vida real.

“A pena de prisão não é a melhor forma de atuar perante um crime” desta natureza, mas deve ser dissuasora de comportamentos, diz Joana Cabral. A moldura deve ter também “um efeito simbólico para enquadrar com a devida proporção um crime que tem consequências graves na vida das pessoas” que são vítimas.

O facto de penas mais elevadas serem raramente aplicadas cria a ideia de “alguma inimputabilidade em quem comete o crime”, salientou ainda a dirigente do SOS Racismo.

Crime público deve ser ponderado

O advogado António Garcia Pereira considera que deve ser público o crime de discriminação e incitamento ao ódio e à violência, para apoiar as vítimas a avançarem com ações judiciais.

“Eu não sou propriamente muito adepto do reforço de incriminações penais”, mas “acho que, naqueles casos em que a situação das vítimas é particularmente indefesa”, é necessário que o enquadramento legal mude, afirmou Garcia Pereira.

O advogado foi o responsável pelo caso que levou à condenação, em primeira instância do militante neonazi Mário Machado a dois anos e 10 meses de prisão efetiva por incitamento ao ódio e à violência contra mulheres de esquerda em publicações nas redes sociais.

Em causa estavam mensagens publicadas no então Twitter atribuídas a Mário Machado e Ricardo Pais em que estes apelavam para a “prostituição forçada” das mulheres dos partidos de esquerda, e que visaram em particular a professora e dirigente do Movimento Alternativa Socialista (MAS) Renata Cambra.

Neste tipo de casos, “para que a ação penal se possa desenvolver, é necessário um impulso processual que muitas vezes a vítima não está em condições de exercer e depois de manter” nos tribunais, afirmou o advogado, comparando a violação com o crime de discriminação e incitamento ao ódio e à violência.

“Muitas vezes as vítimas de violação não apresentam queixa-crime e, portanto, o número de processos ou o número de queixas é uma pequena minoria relativamente à grande maioria dos casos, deixando impunes os autores dos crimes mais infames”, explicou.

No caso dos “crimes de ódio, sobretudo quando são proferidos por quem já mostrou ter capacidade de organização e de prática de atos violentos, de agressão e de intimidação”, deveria “ser ponderada seriamente a hipótese do crime ser público”, disse o jurista.

O ódio ao discurso

“Não vejo necessidade de mais regulamentação legal” do artigo 240 do Código Penal, afirmou à Lusa o advogado Francisco Teixeira da Mota, que se mostra, pelo contrário, preocupado com a falta de tolerância na sociedade para quem pensa de modo diferente.

“Mais do que o discurso de ódio, preocupa-me o ódio ao discurso“, afirmou, referindo-se ao “excesso de combate a quem pensa de outro modo“.

“O discurso de ódio não pode ser entendido como pretender, censurar ou impedir que as pessoas sejam desagradáveis, sejam injustas, sejam estúpidas, sejam ordinárias. Isso incomoda-me porque entramos num campo de censura que é grave”, afirmou o autor do livro “A liberdade de expressão em tribunal”.

No seu entender, o “discurso de ódio tem de ser entendido só quando há um incitamento à violência inequívoca, um incitamento com um risco real ou que as afirmações ponham em causa a dignidade da pessoa visada ou do grupo visado”.

O advogado salienta que “uma pessoa pode ter uma opinião racista, mas isso não é necessariamente discurso de ódio”.

Dentro do racismo há coisas leves

Também a advogada Leonor Caldeira, que defendeu uma família do Bairro da Jamaica contra o líder do Chega, André Ventura, por ofensas ao direito à honra em 2021, discorda do aumento da moldura penal daquele crime: “Isso é usar o Código Penal como uma arma de arremesso“.

O “crime deve ser reservado para uma coisa de uma gravidade especial, e há um espetro de coisas que são racistas, que são discriminatórias, que são classistas”, mas que devem ser combatidas “de outra forma que não a via criminal ou sequer a via judicial”, considerou.

Como exemplo, referiu que “dentro do racismo há coisas mais leves, há microagressões, discriminações, olhares ou comentários desagradáveis, mas depois há coisas do género Bruno Candé, que é um homicídio motivado por ódio racial”.

No entanto, Leonor Caldeira admitiu que o racismo ou o discurso de ódio pode ser uma agravante para outro crime, como agressões ou mesmo homicídios.

Toda a gente em Portugal tem um viés racista, uns mais, outros menos, mas isso é uma coisa com a qual nós vamos ter que lidar e vamos ter primeiro que aprender a identificá-lo e depois desconstruir e educar as novas gerações”, mas “eu tenho muitas dúvidas que isso se faça pela condenação de crimes e pela aplicação de penas”, defendeu.

“Muitas vezes os tribunais têm essa dificuldade, não se querem meter nisso”, disse, recordando o seu caso. No seu entender, o racismo estava subjacente às afirmações de André Ventura sobre a família Coxi que representou, apelidando-os de “bandidos”, mas isso não foi tido em conta pela justiça.

“Eu vim com uma ação cível e tinha um pedido para que o Tribunal reconhecesse que era uma ofensa à honra”, que incluía questões de racismo, recordou.

Neste caso, “era a uma discriminação em função da cor da pele e eu até usei um artifício para não usar a palavra racismo e não assustar o tribunal”, mas, mesmo assim, o juiz “recusou-se a reconhecer isso” na condenação.

“As discriminações já estão subsumidas no ilícito, é uma coisa meio tímida, meio envergonhada, e não se querem comprometer, não querem dizer as coisas como elas são e isso é um problema“, lamentou a advogada.

ZAP // Lusa

2 Comments

  1. Quem define o que é ódio?
    Quem tem o bastião de o definir?

    É que, tal como em outros países, tudo começou assim… muito no ‘amor’ e depois a coisa ‘descambou’.
    (Brasil por exemplo)

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