Famílias vendem crianças para sobreviver no Afeganistão. “Não tínhamos mais nada a oferecer”

2

Stringer / EPA

Com uma crise económica que já dura há décadas, o Afeganistão tem vivido dias cada vez mais sombrios. Enquanto o regime procura reconhecimento internacional e, ao mesmo tempo, encara uma situação degradante, os mais pobres são quem paga o preço mais alto.

Algumas famílias enfrentam grandes dificuldades, chegando ao ponto de ter de vender os próprios filhos para as suas pagar dívidas.

Mohammad Ibrahim, um residente de Cabul, disse à DW que, sem outra opção para pagar uma dívida que contraiu, e depois de ver a sua casa ameaçada, aceitou negociar a filha de 7 anos.

“É difícil oferecer a nossa filha por dívidas. Mas não tínhamos mais nada a oferecer, exceto a nossa própria filha”, referiu Nazo, esposa de Ibrahim.

De acordo com um relatório publicado pela UNICEF – agência das Nações Unidas responsável por fornecer ajuda humanitária e desenvolvimento a crianças de todo o mundo -, “a pandemia de covid-19, a crise alimentar em curso e o início do inverno agravaram ainda mais a situação das famílias. Em 2020, quase metade da população do Afeganistão era tão pobre que lhes faltava necessidades como nutrição básica ou água limpa”.

Estas conclusões foram detalhadas pela UNICEF antes da recente convulsão política e social no país. Segundo a entidade, milhões de crianças continuam a precisar de serviços essenciais, como cuidados de saúde primários, vacinas contra a poliomielite e o sarampo, nutrição, educação, proteção, abrigo, água e saneamento.

Filhas para garantir a sobrevivência

Na província de Badghis, noroeste do país, os moradores foram duramente atingidos por secas prolongadas e, assim, tiveram de deixar as aldeias e as casas para trás. Najeeba, uma jovem que vive num acampamento, foi entregue pela sua família em troca de 50.000 afeganes.

“Faz muito frio durante a noite, e não temos nada para aquecer as nossas casas. Queremos que as ONGs nos ajudem. Ainda sou uma menina. Eu tenho dois irmãos, uma irmã e uma mãe. Não me quero casar. Quero estudar e ser educada“, disse Najeeba à DW.

Gul Ahmad, pai de Najeeba, não vê outra alternativa a não ser vender as suas outras filhas para conseguir pagar as contas.

“Não tenho outra opção e, se formos abandonados, serei forçado a vender as minhas outras filhas por 50, 30 ou até mesmo 20.000 afeganes “, disse Ahmad.

O custo humano das hostilidades continua a ser muito intenso no Afeganistão. A ONU está particularmente preocupada com o impacto do conflito sobre as mulheres e meninas.

De acordo com o Escritório de Coordenação de Assuntos Humanitários da ONU (OCHA, na sigla em inglês), desde 1 de janeiro a 18 de outubro deste ano, 667.903 pessoas fugiram das suas casas por causa do conflito. Das 34 províncias do país, 33 registaram deslocamentos forçados.

Mais da metade da população encontra-se pobreza extrema, segundo a ONU

O Programa Mundial de Alimentação (WFP, na sigla em inglês), da Organização das Nações Unidas, estima que mais da metade da população do Afeganistão vive abaixo da linha da pobreza, e a insegurança alimentar – que é a falta de acesso a suprimentos básicos de nutrição – está a aumentar, muito devido à instabilidade política, social e económica que atinge comunidades inteiras.

O WFP afirma que pelo menos 22,8 milhões de pessoas, de um total de quase 35 milhões de habitantes, são afetadas pela insegurança alimentar no país, incluindo as centenas de milhares que tiveram de fugir de conflitos desde o início deste ano.

O aumento da pobreza pode ser ainda mais percetível pela ausência cada vez maior de movimento nas ruas de Cabul.

A economia deverá cair até 30% em 2021, de acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI). O Produto Interno Bruto (PIB) foi de cerca de 20 bilhões de dólares em 2020.

De acordo com o Banco Mundial, 43% desse valor foi baseado em dinheiro de ajuda proveniente do exterior. Antes do retorno do Talibã, 75% dos gastos públicos vinham de doações de ajuda externa.

A saída das forças estrangeiras e de muitos parceiros internacionais deixou o país sem doações, que financiaram três quartos dos gastos públicos.

Nos últimos meses, o governo do Talibã tem lutado para pagar salários de funcionários públicos, enquanto os preços dos alimentos sobem e os bancos enfrentaram uma crise de liquidez.

Muitos afegãos estão a vender bens para comprar alimentos. A muitos deles, a menos que o Afeganistão receba ajuda do exterior, a pobreza extrema pode fazer com que tenham de vender outros filhos e filhas.

Enquanto o regime do Talibã mantém as negociações pelo reconhecimento internacional e tenta, assim, evitar o colapso económico do país, as organizações internacionais pedem ajuda humanitária imediata.

No início desta semana, o diretor-executivo do WFP, David Beasley, pediu apoio maciço durante reunião com lideranças em Genebra, na Suíça.

“O momento é agora, não podemos esperar seis meses. Precisamos de fundos imediatamente para que possamos movimentar os suprimentos antes que o inverno chegue de vez. Não podemos virar as costas ao povo do Afeganistão”, disse Beasley.

Crescimento na taxa de suicídio

Enquanto as fontes de rendimento secaram para muitos, e o desemprego continua a crescer no Afeganistão, tem ocorrido também um crescimento nos índices de suicídios. Rohullah, de 60 anos, guarda de uma escola administrada pelo governo no norte de Badakhshan, trabalhou sem receber nenhum salário nos últimos três meses, tomando a decisão de se matar, deixando para trás uma família de luto.

Taiba, filha de Rohullah, contou à DW: “Ele não disse nada. Um dia, estávamos todos em casa, e  pediu uma caneta e um papel para anotar as dívidas que tínhamos. Todos nós pensamos que estava a brincar connosco, mas estava a falar a sério e, alguns dias depois, cometeu o suicídio”.

Governo pede que não se transmitam séries com mulheres

O Ministério da Promoção da Virtude e Prevenção do Vício do Governo talibã apelou hoje às estações de televisão afegãs para que deixem de transmitir séries e novelas com a participação de mulheres.

“As televisões devem evitar exibir telenovelas e séries em que as mulheres sejam protagonistas”, diz um documento do ministério enviado à comunicação social.

As novas diretrizes são também para que as televisões garantam que as jornalistas usam “o véu islâmico”, sem especificar se se trata de um simples lenço na cabeça, já habitualmente usado na televisão afegã, ou um véu mais completo.

“Estas não são regras, mas orientações religiosas”, disse o porta-voz do ministério, Hakif Mohajir, citado pela France-Presse.

Esta é a primeira vez que o ministério, responsável por garantir o respeito diário da população pelos “valores islâmicos”, tenta regular a televisão afegã desde que os talibãs voltaram ao poder em meados de agosto.

Derrubados em 2001, os talibãs regressaram ao poder 20 anos depois, em agosto passado, depois de as forças norte-americanas e aliados se terem retirado do país.

ZAP // DW, Lusa

 

 

 

 

2 Comments

  1. Onde chega a miséria humana, tudo por causa de ideologias e rivalidades religiosas, mas muito sobretudo pela ganância do Poder, indiferentes a todo o sofrimento humano!

  2. As meninas vistas como mercadoria que o pai vende e troca. Esse pai, se não consegue pagar as dividas que se venda como escravo ou se suicide!

Deixe o seu comentário

Your email address will not be published.