Em 2020 assinalaram-se os 50 anos da separação (oficial) dos The Beatles. Daniel Filipe Nunes, jovem músico, olha para os “miúdos do Liverpool” como a sua grande referência musical – e é quase uma enciclopédia ambulante sobre o grupo. Daniel tem 22 anos, é formado em Produção e Tecnologias da Música. Em 2020 lançou o seu primeiro álbum e aceitou conversar sobre os The Beatles, sobre música, sobre História e sobre ele próprio. Fica aqui o essencial dessa conversa.
ZAP – Muita gente chorou naquela época, quando os The Beatles se separaram. Tenho quase a certeza de que não eras nascido na altura…
DANIEL FILIPE NUNES (DFN) – Não. Há 50 anos não era nascido. Apesar de ter chorado um bocadinho depois, quando soube que eles já não estavam juntos.
ZAP – Um pedaço depois. Porque começaste a ouvir este grupo? Foi aquele contexto de “o meu pai ouvia, a minha mãe ouvia”, ou foi uma escolha tua?
DFN – Sinceramente não sei quando foi o meu primeiro contacto com os The Beatles. É um pouco como a Quinta Sinfonia, do Beethoven, que parece que já está enraizada quando nascemos. Eles foram um grande marco da cultura pop, no mundo. Quando eu nasci e, depois quando estudei, não estavam no auge mas estavam a ser bastante falados novamente, por causa dos novos lançamentos que tinham feito.
ZAP – Disseste há pouco tempo, na RTP, que a tua grande referência e influência são os The Beatles. O que vês neles?
DFN – Influência no estilo musical, sem dúvida. O que vejo neles é, acima de tudo, a partir da segunda fase (1965 ou 1966), quando deixam de estar constantemente em digressões, e lançam o Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band, etc: aí vejo quase uma rebeldia interna entre eles e com eles próprios, que se traduz na música. Uma falta de preocupação. Fazem música por fazer música, sem seguirem rótulos e sem olharem para a grandeza do grupo. Tiveram a capacidade de não ficarem colados ao que faziam. Romperam contrato com a editora anterior, por exemplo. Foi um renascimento dentro da própria banda e dentro deles próprios. É isso que me atrai imenso num artista, numa pessoa: a capacidade de mudar.
ZAP – Achas que eles conseguiram mudar esse sentimento na sociedade, no geral? Esse sentimento de liberdade, de “eu faço isto porque gosto”? Além de terem apresentado um estilo que, não sendo inédito, foi uma novidade para muita gente.
DFN – Sim, o estilo não era inédito, no início do grupo. Eles até foram um pouco forçados pela editora a lançar um segundo disco, tal era o impacto que tinham causado. E esse segundo disco está cheio de versões de músicas de outros artistas. Mas principalmente eles mudaram esse sentimento, sim, sobretudo a partir do momento em que romperam contrato com a editora e decidiram deixar de estar sempre a dar concertos. Foi uma mudança musical e espiritual; e isso é o mais importante, para mim. O mundo da música continua a ser bastante industrializado mas, depois dos The Beatles, começaram a surgir cada vez mais músicos despreocupados.
ZAP – Eles mudaram a sociedade daquela época ou foram fruto de uma sociedade em mudança?
DFN – Acho que é um pouco dos dois. Um exemplo: não foi o John Lennon que criou o movimento hippie nos anos 60, nem nada que se pareça; ele juntou-se àquele movimento. Na música existia muito a ideia de “lançamos um álbum, damos concertos, lançamos um álbum, damos concertos”. Mas nos The Beatles, quando houve a British Invasion (quando muitos artistas britânicos atingiram sucesso no estrangeiro, sobretudo nos Estados Unidos da América), uma mera sala de concertos não era suficiente. Foram a primeira banda na História a tocar num estádio aberto. Com um recorde na altura, de mais de 55 mil pessoas. Através da música e através da mensagem, de paz, amor, cumplicidade e “não à guerra”, como chegaram a tanta gente e sendo um marco cultural tão grande nos anos 60, inevitavelmente eles mudaram a sociedade.
ZAP – Falaste em 1965 e 1966. Mas o primeiro single é de 1962 e começaram antes a tocar juntos. Divides a carreira dos The Beatles em duas épocas, claramente.
DFN – Até 1965 eram uma banda completamente mainstream. Como são hoje os Coldplay ou Imagine Dragons. Eram uma banda pop, seguiam Elvis, Bob Dylan. Em 1966 sai o disco ‘Revolver’ e esse álbum mudou completamente a minha visão sobre os The Beatles. Eu nem queria acreditar que aquilo era os The Beatles. Aparece o George Harrison como compositor, ele começa a ganhar identidade, brio e vontade de querer participar de outra forma. E porque é que eles mudaram aí? Porque deixaram de tocar ao vivo. O John Lennon confessou numa entrevista que os concertos estouravam com eles. Tinham de estar em todo o lado. Se desse, aqueles quatro miúdos de Liverpool teriam de estar em todo o lado ao mesmo tempo. Em 1966 eles decidiram parar. O John Lennon chega aos estúdios de Abbey Road, onde eles tinham uma sala quase exclusiva, e diz: “Malta, vamos parar de tocar ao vivo porque eu não estou a aguentar”. O Paul McCartney contesta um pouco, ao início. O George Harrison e o Ringo Star aceitaram. Mais tarde, o George Harrison até contou que a melhor coisa que aconteceu aos The Beatles, além da separação, foi terem deixado de estar sempre em digressões, em concertos. E essa paragem deu-lhes espaço e deu-lhes disposição para realmente se focarem na música que estavam a fazer. As bandas de estúdio nem existiam, na altura. Ou, se existiam, não eram conhecidas. Eles abriram essa possibilidade a todas as bandas que apareceram depois. O John Lennon disse aos outros que não queria chegar aos 50 anos e continuar a tocar a ‘She loves you’ e a ‘Yesterday’. Ele não queria estagnar, queria fazer o que lhe apetecesse. E a banda foi com ele. Os The Beatles não tiveram um líder mas o mais próximo disso talvez tinha sido o John Lennon, pelo menos em termos de mentalidade e de espírito.
ZAP – No meio dessa resposta lembraste, e bem, uma coisa: eles eram miúdos de Liverpool. Tinham 20 anos, ou pouco mais, quando começaram a ser conhecidos em todo o mundo. Os miúdos foram crescendo e, praticamente aos 30 anos, separaram-se porque cada um queria seguir a sua vida, a nível musical. Os estilos não combinavam, como acontecia 10 anos antes. Foi muito por aí, não foi?
DFN – Foi bastante por aí. Muita gente atribui as culpas à Yoko Ono, até odeiam a Yoko Ono. Mas eles começaram a tornar-se muito individuais e demasiado autossuficientes, talvez. Podiam funcionar como banda mas cada um queria tomar o seu rumo, levar a sua carreira a solo. E, na minha opinião, uma banda tem que ter um líder excelente, um frontman, se quiser durar 20 ou 40 anos. Como o Freddie Mercury ou o Mick Jagger. Os Rolling Stones cantam e cantarão para sempre a ‘(I Can’t Get No) Satisfaction’, o Mick Jagger dá umas corridas no palco e canta, o Keith Richards faz uns solos e fazem isto durante a vida toda. Com os The Beatles não aconteceu o mesmo, e ainda bem. Ainda bem que eles se separaram porque, depois, os quatro tiveram carreiras a solo brilhantes. Cada um seguiu o seu caminho e, quando se ouvem músicas das suas carreiras a solo, ouve-se um bocadinho dos The Beatles em todos eles mas, mesmo que se juntassem todos, já não dariam os The Beatles que conhecíamos. Uma banda tem de ser uma simbiose. Quando quatro personalidades tão fortes estão juntas, a banda não dura muito. Lá está, era preciso haver um líder, um vocalista, uma cara da banda. E eles não tinham isso. Eram os quatro, sempre os quatro. Quando tocavam até ficavam todos em fila, menos o Ringo Starr, na bateria. Eram todos pares, todos iguais.
ZAP – ‘Love me do’ ou ‘Let it be’?
DFN – ‘Let it be’, sem dúvida. Na ‘Love me do’ ainda estavam muito fresquinhos. A ‘Let it be’, que até é mais uma música do McCartney, um desabafo dele, do que uma música dos The Beatles, enquadra-se na fase deles que eu mais gosto.
ZAP – ‘All my loving’ ou ‘Get back’?
DFN – Hum… Gosto muito dessas duas músicas. A escolha já não é tão óbvia, aí. Mas ‘Get back’, pela mesma razão.
ZAP – ‘Help!’ ou ‘Hey Jude’?
DFN – Tem que ser a ‘Hey Jude’. Além de ser uma das minhas músicas preferidas de todos os tempos, há sempre alguém, algures, a cantar aquela parte do “nanana”.
ZAP – Álbum preferido dos The Beatles?
DFN – Pois… Isso é mais complicado. Vou escolher dois: Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band e Abbey Road.
ZAP – Música preferida?
DFN – ‘Hey Jude’.
ZAP – Elemento preferido?
DFN – Com os quatro juntos, não faz muito sentido eleger um. Se falarmos nas carreiras a solo, e mesmo em termos de personalidade e estilo musical ao qual me aproximo mais, é George Harrison. Adoro a melodia do Paul McCartney, adoro a rebeldia do John Lennon, adoro a paz que o Ringo Star transmite. O George Harrison é isso tudo: nas músicas que faz, na maneira de ele falar, na maneira de ele ser… Se eu tivesse de me aproximar mais de um Beatle, seria do George Harrison, sem dúvida.
ZAP – Os The Beatles inspiram o teu estilo musical? Qual é o teu estilo musical?
DFN – Não consigo definir o meu estilo. Porque não sou só influenciado por uma banda ou por um estilo. Tem que haver um certo distanciamento da nossa música, para realmente percebermos quais são as nossas influências. E varia de música para música. Mas em termos de composição, enquadro-me com o folk americano do Dylan, do Paul Simon, com o pop-rock britânico dos The Beatles. Em termos de estilo, enquadro-me muito com o George Harrison, principalmente no primeiro álbum que lancei, o ‘Mar de Alento’, que tem bastante de George Harrison. Apesar de eu não estar a pensar em ninguém, quando estou a compor. Está lá o Daniel Filipe Nunes e estão lá todas as pessoas que o Daniel Filipe Nunes leva às costas.
ZAP – O que andaste a fazer ao longo de 2020 e o que vem aí em 2021?
DFN – Este ano foi o meu ano de estreia, em criar canções. Comecei com um álbum em que as letras não são minhas. São de um amigo meu, do Leonardo Camargo Ferreira. E talvez o primeiro álbum seja mais musical. Depois, o ano foi uma espécie de autodescoberta. Descobri que tenho um enorme gosto em escrever. Lancei o single ‘Liberdade incondicional’ em setembro; nesse single, já sou eu que componho, que produzo e sou o intérprete. Mais para o final do ano, lancei o meu segundo EP, ‘O corpo ou a vida’. Já tinha lançado o meu primeiro EP, ‘Eterno vagar’. Foram experiências musicais completamente distintas, também com influências portuguesas, como Sérgio Godinho, Zeca Afonso, Rui Veloso, Jorge Palma… Em 2021 vai sair um álbum, que já está a ser pensado, a ser composto. E adorava dar um concerto ao vivo.
(a entrevista completa está disponível no início deste artigo, na ligação para o Soundcloud)