Damnatio memoriae. Como eram “cancelados” os antigos romanos?

Não existiam redes sociais, mas também se “cancelavam” pessoas: quando faziam algo considerado errado, eram eliminadas dos registos históricos.

Ao longo da história, as pessoas têm tentado deliberadamente esquecer líderes corruptos ou criminosos que ofendem o sentido de moralidade ou justiça do público. O termo damnatio memoriae (“condenação da memória”) descreve este tipo de esquecimento deliberado nos tempos antigos.

Damnatio memoriae refere-se ao “apagamento” político deliberado de uma pessoa após o seu fracasso político e, normalmente, a sua morte, explica o The Conversation. É uma espécie de cultura de cancelamento post-mortem.

De onde veio esta ideia e como era na Roma Antiga?

Uma ideia antiga

O termo foi provavelmente cunhado pela primeira vez no título de uma tese escrita por dois filólogos do final do século XVII, Christoph Schreiter e Johann Heinrich Gerlach. Mas descrevia uma prática muito mais antiga.

Na Antiguidade, a rasura podia incluir a remoção de cabeças de estátuas ou a supressão de nomes em inscrições.

Vários imperadores — incluindo Nero e Domiciano — estiveram sujeitos ao tipo de práticas de apagamento encapsuladas pelo termo damnatio memoriae.

Mas um exemplo particularmente bom de damnatio memoriae envolve Crispus, o primeiro filho do imperador romano Constantino, o Grande (o primeiro imperador romano a converter-se ao cristianismo).

Em 326 d.C., Constantino executou Crispus — de acordo com uma versão da história — com “veneno frio”. É muito provável que Constantino tenha descoberto que Crispus estava a ter um caso com a segunda mulher de Constantino, Fausta. Isto foi especialmente escandaloso porque Fausta era a madrasta de Crispus.

Mais tarde, Fausta morreu num banho muito quente. Pode ter sido uma tentativa de aborto falhada ou um método de execução deliberado, embora invulgar.

Seja como for, Crispus foi morto e, no rescaldo, foi sujeito à damnatio memoriae.

Crispus, o Cancelado

Na altura da sua morte, Crispus era uma figura política importante. Um acordo político tinha-o elevado à posição de César (que significava “imperador júnior” e, sem dúvida, herdeiro do trono).

As campanhas militares de Crispus tinham sido bem sucedidas e ele tinha sido objeto de elogios públicos. Tinha ocupado o mais alto cargo constitucional — o consulado — em nada menos do que três ocasiões.

Isto significava que o nome de Crispus tinha sido escrito em pedra por todo o império romano, desde as proclamações oficiais do governo até aos marcos mais mundanos que assinalavam as estradas romanas.

A placa do museu confirma que o nome de Crispus já apareceu ali ao lado dos seus colegas imperadores juniores — os seus meios-irmãos Constantino II e Constâncio II.

Em tempos, lia-se na íntegra:

Aos nossos quatro senhores, Flávio Constantino, o Grande, o imperador sénior eternamente vitorioso, e aos nossos mais nobres imperadores juniores, Flávio Júlio Crispo, Flávio Cláudio Constantino e Flávio Júlio Constâncio.

A lacuna onde outrora se escrevia Flavius Julius Cripus é bastante óbvia — e esse é realmente o objetivo.

Não se trata de uma eliminação secreta do nome de alguém, mas de uma exibição pública da sua remoção.

Serviu como um poderoso lembrete do estigma contínuo que deveria estar associado ao nome de Crispus para todos os romanos que percorressem a estrada nos anos seguintes.

Ao mesmo tempo, esta eliminação desafiava diretamente a importância e a relevância de Crispus para a história, ao remover um registo da sua existência e, neste caso particular, da sua proeminência como imperador júnior.

O nome do meio-irmão de Crispus, Constantino II, também foi apagado deste marco, quase de certeza depois de ter sido morto numa guerra civil contra o seu irmão mais novo, Constâncio, no ano 340.

Como era feita a damnatio memoriae?

Em tempos, partiu-se do princípio de que a damnatio memoriae devia ter sido ordenada e organizada. Nos últimos anos, porém, os estudiosos passaram a entender a eliminação deliberada de nomes como um processo muito mais orgânico e localizado.

Séculos antes de Crispus, as inscrições que se referiam a Marco António, confidente próximo de Júlio César, tinham sido igualmente apagadas e removidas. Após a morte de César, Marco António tinha-se envolvido com a ex de César (Cleópatra) e tinha-se desentendido de forma espetacular com o herdeiro de César (Octávio, que em breve se chamaria Augusto).

Marco António foi sujeito a damnatio memoriae depois de perder a guerra contra Augusto, mas nem todas as menções ao seu nome foram apagadas — muitas, incluindo algumas que celebram as proezas sexuais de António, permanecem.

As mulheres proeminentes também podiam ser sujeitas a este tipo de apagamento da memória.

Messalina, a famosa e promíscua segunda mulher de Cláudio, foi objeto de um decreto senatorial após a sua morte que procurava apagar o seu nome e até proibir a sua menção. No entanto, subsistem inscrições que se referem a Messalina.

Mas mesmo que não saibamos exatamente como era feita a damnatio memoriae, ou com que consistência era aplicada, sabemos que aconteceu.

No caso do marco que vi em Brescia, só podemos especular sobre a razão pela qual o nome de Crispus foi retirado deste em particular. Talvez estivesse numa posição proeminente onde chamasse demasiado a atenção, ou talvez tenha havido uma pressão local para remover o seu nome.

Seja como for, este marco é a prova física de algo que todos nós fazemos instintivamente quando um político falha em circunstâncias controversas, embaraçosas ou perturbadoras: fazemos o nosso melhor para o esquecer.

ZAP //

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