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Combater a solidão, evitar histórias “chocantes”: eis o projeto artístico Gerações

O Projeto Gerações foi pensado e está a ser executado por jovens de Guimarães. Financiado pelo programa Norte 2020 ‘Cultura para Todos’, está a ser promovido pelo Núcleo de Estudantes da Licenciatura em Teatro da Universidade do Minho.

O objetivo é, através da arte, melhorar o dia-a-dia de utentes de duas Instituições Particulares de Solidariedade Social: o Centro Social Irmandade de São Torcato e a Santa Casa da Misericórdia de Guimarães. O diretor-artístico Luís Peixoto-Vilar fala sobre o Gerações, em entrevista ao ZAP.

ZAP – Projeto Gerações: o que é, quando, onde, como, porquê…?
Luís Peixoto-Vilar – Na realidade o Projeto Gerações tinha uma vertente teatral bem mais acentuada do que tem atualmente. Foi pensado em 2019 e a ideia inicial era trabalhar com utentes de duas instituições durante nove meses. Iríamos criar com elas algo artístico, uma peça de teatro, por exemplo. Mas entretanto chegou a covid-19…

ZAP – Já ouvi falar.
Luís – …e obrigou-nos a reformular tudo. As instituições e os idosos ficaram com novas necessidades. Redefinimos o projeto, em 10 dias criámos um novo projeto. Foi uma loucura.

ZAP – É um Gerações – parte 2.
Luís – É isso. Já tínhamos a ideia de trabalhar com idosos e de resolvermos alguns problemas que as instituições têm. O Gerações (parte 2) parte deste problema que se agravou durante a pandemia: existe uma necessidade de intervenção artístico-educativa, para o desenvolvimento dos utentes, e também existe uma lacuna muito grande na lista de atividades que as instituições poderiam dar aos utentes. A pandemia adiou ou cancelou muitas atividades e houve idosos que passaram momentos de isolamento muito fortes, momentos bastante pesados. Tivemos histórias de idosos que foram chocantes, para nós. Um sentimento de solidão enorme. E então pensámos em duas atividades: o Zoom In, que são conversas performativas, um espaço online de partilha entre artistas e idosos, no qual um artista ou um grupo conversa diretamente com um idoso; e haverá o Art in a Box, um laboratório de criação, algo para o utente desenvolver no seu espaço, seja no seu quarto, ou numa sala, através de vídeos, e que possibilitem o desenvolvimento da sua autonomia, entre outros atributos. Coisas simples, mas não infantis. Ainda faremos um documentário sobre este projeto. Estamos muito preocupados com esta questão da pedagogia. É um público que está bastante fragilizado. Temos também um perfil de cada idoso para, antes de cada conversa no Zoom In, o artista estar preparado para o que pode acontecer. E algumas coisas são mesmo bonitas de se ver, nessas conversas.

ZAP – Quais coisas bonitas?
Luís – O Zé Amaro, por exemplo. Os idosos, quando souberam que iam falar com ele, foi uma loucura. As conversas no Zoom In são individuais: há o idoso e o artista. É um momento íntimo. Uma senhora pediu ao Zé Amaro para ele cantar uma canção; ele toca para ela e a senhora ficou toda feliz, radiante… Batia palmas, ficava toda contente. Outro exemplo foi uma senhora, em conversa com o grupo da Universidade do Minho, Opum Dei, e eles perguntaram à senhora como está e ela entrou logo a rasgar: “Olhe, está tudo mal! Estou farta desta pandemia”. O grupo, que já sabia que a senhora escrevia poemas, pediu-lhe para ela ler um poema. Não conseguia ler mas ainda se lembrava de poemas que tinha escrito há imensos anos. Citou um poema sobre a mãe. Começou a chorar. Foi um momento… Ainda agora, só de pensar nisso, já me vêm as lágrimas nos olhos. Foi mesmo bonito. A senhora com dificuldades… E depois diz aquele poema de cor sobre a mãe, que escreveu há 30 anos, começa a chorar… Foi… São momentos que valem a pena.

ZAP – Idosos são o público alvo porquê?
Luís – Isto foi… muito grave. Houve imensos surtos de covid-19 numa das instituições e, por isso, os idosos passavam tempos infinitos nos seus quartos. Um idoso ia ao dentista e, quando voltava, tinha de ficar 15 dias seguidos no seu quarto. Passar o dia inteiro no quarto a ver televisão? Não quero imaginar esse cenário. O desenvolvimento de uma comunidade vê-se na maneira como ela trata os seus idosos. Temos que tratar bem deles.

ZAP – Que força tem a palavra nos idosos?
Luís – Optámos por um abordagem muito diferente, na questão da literatura. Pegámos no Alfabeto Africano, do José de Guimarães, e pedimos aos idosos para olharem para uma imagem desse Alfabeto Africano, imagens que são relativamente abstratas, e para contarem uma história pequena a partir dessa imagem.

ZAP – Qual foi o teu contexto para chegares até aqui?
Luís – Sou licenciado em Teatro mas, antes de estudar Teatro, entrei na licenciatura de Física. Odiava, saí. Em 2011, em plena crise económica, e filho de mãe solteira, com poucas capacidades financeiras, tinha que ir trabalhar. Estive na Suíça durante dois anos a tentar encontrar o meu caminho. Até que o teatro chegou até mim. Em relação aos idosos, por exemplo, os meus avós nunca quiseram ir para um lar. Foram intransigentes nisso. Nunca percebi porquê. Agora vejo as notícias e percebo porque ninguém quer ir para um lar; até eu começo a ficar com medo de ir para um lar. Nalguns casos parece uma desgraça. Mas não tem de ser. Há lares, há instituições, que dão muito de si aos idosos, dão o que têm e o que não têm. E nós temos de contribuir para isso, temos de criar essas condições. Porque os mecanismos estão lá. Temos que ter iniciativas, ideias, temos que pensar como podemos melhorar a vida dos nossos idosos. As instituições estão completamente sobrecarregadas e, com razão, não conseguem satisfazer as necessidades efetivas que os idosos têm. Esta vontade acentuou-se quando perdi a minha mãe, em novembro de 2020. E isso mudou a minha vida toda. Fez-me pensar no que estamos a fazer aqui, fez-me ver que não podemos virar a cara face a estes problemas. Temos que criar condições melhores para toda a gente.

ZAP – O teatro chegou até ti?
Luís – Fui lavar pratos para a Suíça. Tinha 19 anos, só sabia falar inglês, estava no meio da montanha, numa estância, só se falava italiano e alemão, na cozinha ninguém falava inglês… Fui explorando. Viajei, conheci, descobri. Procurei arte. Subitamente passei a interessar-me muito por museus, passei a querer perceber porque as pessoas agem da forma que agem. Um professor disse-me que o teatro é o laboratório de estudo do comportamento humano. O teatro é o sítio melhor para ajudar a perceber melhor o comportamento humano, para testar ideias, conceções. É o sítio para experimentar, descobrir, para descobrir toda uma nova humanidade. Foi neste sentido que o teatro me encontrou: comecei a ter este interesse e comecei a procurar estas respostas, a procurar perceber porque as pessoas são assim. Quando eu estava na Suíça a lavar pratos, eles falavam imensamente mal de mim. Em italiano, mas eu percebia algumas coisas. Falavam sobre mim, à minha frente, mas como se eu não estivesse ali. E causava-me comichão pensar: porque as pessoas são assim mesquinhas? O que aconteceu para elas serem assim? Ou ao contrário: po rque há pessoas tão boas? Porque há pessoas que viram o mundo do avesso e conseguem coisas incríveis? Eu queria saber mais sobre isto, precisava de ferramentas e foi no teatro, de forma natural, que encontrei a resposta para estes problemas.

Entrevista completa, com Lisandra Rodrigues:

Nuno Teixeira, ZAP //

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