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“Colonialismo do carbono”. Quantos carros a diesel vale a sua t-shirt Made In Cambodja?

É uma questão recorrente: de onde vem a nossa roupa? Aparentemente, a resposta está “à mão de uma rotação do pescoço” e à distância de uma etiqueta. A verdadeira resposta é muito mais complexa.

Mesmo a produção de uma só t-shirt depende da coordenação de uma série de cadeias de fornecimento interligadas, geralmente abrangendo várias nações.

De acordo com a The Conversation, este sistema globalizado é uma maravilha do engenho humano e da logística, mas também pode obscurecer as verdadeiras emissões de carbono dos produtos que utilizamos, levantando sérias questões sobre a sua sustentabilidade.

O sistema permite aos países mais ricos transferir eficientemente as suas emissões para os menos ricos através do “colonialismo do carbono“.

Se o rótulo do sua peça de roupa diz “Made in Camboja“, seria razoável assumir que indica claramente a sua origem. Mas a etiqueta não conta toda a história.

O Camboja exporta anualmente 40 mil toneladas de vestuário para o Reino Unido (4% do vestuário britânico), e a maioria parte do porto de Sihanoukville. A 18 mil km do principal porto marítimo do Reino Unido, Felixstowe, é uma distância enorme para a T-shirt viajar.

Mas, como revelam os autores de um novo estudo, publicado em 2021 na Squarespace, esta é apenas a última etapa de uma viagem ainda mais longa.

A rota da China

Ao contrário de outros exportadores de vestuário, tais como o Bangladesh ou o Vietname, o Camboja não cultiva nem processo algodão, nem fabrica fibras artificiais.

Em vez disso, as fábricas cambojanas importam têxteis do estrangeiro, muitas vezes apenas dando os retoques finais a peças de vestuário parcialmente acabadas. Assim, embora o seu vestuário possa dizer que é do Camboja, os têxteis provavelmente vieram de longe — muito mais longe.

Entre 2015 e 2019, 89 mil toneladas do total de 161 mil toneladas de peças de vestuário que o Reino Unido importou do Camboja podem estar indiretamente ligadas a produtos de algodão, tecidos de malha e fibras artificiais fornecidas ao Camboja pela China.

E a maior parte da indústria do vestuário da China está localizada nas províncias costeiras de Jiangsu, Zhejiang, Guangdong e Hubei, a cerca de 2,500km a 6,000km de Camboja.

Mas o processo estende-se ainda mais. 84% da produção interna de algodão da China ocorre na província longínqua ocidental de Xinjiang.

Isto significa que o algodão bruto processado nas fábricas costeiras da China deve primeiro viajar entre 3.000 km e 4.500 00 km de Xinjiang por caminhos de ferro —  aproximadamente a distância de Lagos a Atenas.

Assim, mesmo antes de a sua T-shirt rotulada “Camboja” chegar ao Camboja, as matérias-primas já viajaram entre 5.500 e 10.300km, por mar e por caminhos de ferro. Isto acrescenta um enorme custo de carbono escondido à peça de vestuário final.

No entanto, a história ainda vai a meio. A China é o maior produtor mundial de algodão, produzindo mais de 25% do total da cultura mundial.

Mas também é o principal fabricante mundial de vestuário, e a procura supera consideravelmente a oferta. A China produziu 6 milhões de toneladas de algodão em bruto em 2018/2019, mas consumiu 9 milhões de toneladas, gerando um défice de 3 milhões de toneladas.

A China compensa este défice com importações. A maioria — 88% do total — provém da Austrália, EUA, Usbequistão, Índia e Brasil.

As distâncias percorridas por estas importações variam — desde cerca de 1.350 km (entre Tashkent, Usbequistão e Xinjiang, China) até um máximo de 35 mil km (entre Los Angeles, EUA e Xangai, China, se via Panamá e Suez).

Desta forma, a etiqueta marcada como “Camboja” nessa T-shirt, marca apenas uma paragem ao longo de uma vasta viagem global. De facto, antes de a comprar no Reino Unido, a T-shirt e as matérias-primas por detrás dela, provavelmente viajaram entre 25 mil km e 64 mil km — mais de uma vez e meia a circunferência da Terra.

Um longo caminho

Uma cadeia de abastecimento com esta envergadura é alarmante. Mas as implicações mais vastas são ainda mais graves.

Uma simples T-shirt pode produzir até 6,75 kg de carbono durante a sua produção e venda. A pegada de carbono de um produto é frequentemente estimada através da soma do carbono gerado durante todo o processo de produção.

Isto inclui, por exemplo, o crescimento do algodão, a sua transformação em têxteis, o seu fabrico em vestuário, transporte, retalho, utilização, e eliminação.

E quando um país importa um produto, todas estas emissões são adicionadas à sua pegada de carbono importada ou incorporada.

Uma vez que os processos envolvidos são tão complexos e variados, contudo, tendemos a utilizar valores médios para uma determinada parte do processo de produção, em vez de medir empiricamente toda a cadeia de fornecimento.

Porém, este sistema não tem em conta as grandes distâncias “escondidas” que a “T-shirt exemplo”, e as matérias-primas por detrás dela percorreram.

Para 25 mil km, como quando o algodão vem exclusivamente da China ocidental, o transporte de uma só T-shirt etiquetada Camboja emitiria provavelmente 47g de C02.

Isto representa 7,1% do carbono emitido durante toda a sua produção e mais 50% do que as estimativas utilizadas por grupos de defesa da sustentabilidade, tais como o Carbon Trust.

Para 64.000km, caso do algodão com origem nos EUA ou Brasil, a T-shirt irá gerar 103g de CO2 na sua viagem à volta do mundo. Isto é mais de 15% do total das emissões geradas durante a sua produção e mais do triplo do valor médio sobre o qual são calculadas as pegadas de carbono.

4.400 carros em trânsito num ano

Estas discrepâncias podem não parecer muito numa única T-shirt. Mas fazem uma enorme diferença quando escalados para cobrir todo o comércio de vestuário do Reino Unido – Camboja.

As 40 mil toneladas de vestuário importadas anualmente do Camboja para o Reino Unido seriam geralmente estimadas em 8.304 toneladas de CO2.

Contudo, o número real, tendo em conta as distâncias ocultas percorridas pelas matérias-primas, situa-se entre 13 mil e 28 mil toneladas — ou seja, até 20,4 mil toneladas não contabilizadas, o equivalente a 4.422 carros em circulação durante um ano.

Agora imagine estes números aumentados para refletir verdadeiramente cada produto vendido globalmente.

Emissões ocultas na economia global

Números como estes evidenciam os sistemas invisíveis subjacentes à nossa vida quotidiana, lançando dúvidas sobre muitos dos pressupostos que fazemos sobre a sustentabilidade.

De facto, a falta de transparência em torno das cadeias de abastecimento globais significa que muitas fontes de emissões ou estão ocultas ou significativamente subestimadas.

E a sua extraordinária complexidade impede uma análise detalhada e mina a responsabilização, ocultando muitas emissões de carbono do ponto de vista público.

Esta capacidade de “esconder” emissões em processos de produção globais complexos tem sido chamada “lacuna de carbono“, ou “colonialismo do carbono“, por permitir às grandes economias importadoras deslocar os processos de produção intensiva de carbono das suas estatísticas de emissões para as de outros países, muitas vezes com menos capacidade de medir a extensão total destes impactos.

Há agora um reconhecimento crescente de que estes problemas podem estar na raiz do nosso fracasso mais geral em reduzir as emissões de carbono.

No total, as emissões importadas são agora 1/4 das emissões globais CO2 e a abordagem desta questão deve ser vista como a próxima “fronteira da política climática”.

A etiqueta de origem de um único país cosida na sua T-shirt é uma ilusão, refletindo um problema que afeta tanto os artigos que compramos e usamos diariamente.

De facto, esse país de origem é apenas uma paragem numa viagem global de montagem que é um anátema para uma produção verdadeiramente sustentável e um obstáculo-chave na nossa luta contra a crise climática.

Uma melhor compreensão desta geografia oculta é o primeiro passo para combater as pegadas de carbono opacas e mal compreendidas da nossa economia global e descolonizar sistemas de contabilidade ambiental que favorecem os maiores poluidores do mundo.

Inês Costa Macedo, ZAP //

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