A pandemia de covid-19 mostrou a importância da Ciência como arma para a salvaguarda do mundo inteiro e veio dar um impulso decisivo à ligação entre a academia e a indústria, segundo investigadores portugueses ouvidos pela agência Lusa.
Para a galardoada cientista Elvira Fortunato, esta pandemia é a primeira grande crise global a seguir à II Guerra Mundial e veio “mostrar o poder que a Ciência tem e a necessidade de investir nela”.
“Mostra-nos que a Ciência é a mão armada do mundo. Movimentou uma ‘task force’ mundial que pôs todos os cientistas a trabalhar em conjunto e apressou coisas que demoravam a acontecer”, afirmou em declarações à Lusa.
A vice-reitora da Universidade Nova de Lisboa e diretora do Centro de Investigação de Materiais acredita que o papel que a Ciência assumiu no contexto da pandemia vem resolver de vez o debate sobre a necessidade de investimento e fez com que se deixasse para trás a concorrência que também existe na área.
“Esqueceu-se por agora quem é que chega à frente, quem é que faz primeiro”, afirmou exemplificando com o consórcio formado pela Nova, Instituto Gulbenkian de Ciência, Fundação Champalimaud e Instituto de Medicina Molecular para responder às chamadas e projetos promovidos pela Fundação para a Ciência e Tecnologia e pelo Ministério da Economia.
O ex-presidente do Instituto Superior Técnico Arlindo Oliveira disse à Lusa que o trabalho dos cientistas com hospitais e sistemas de saúde ganhou “uma prioridade que não tinha antes”.
Na sua área de investigação, as ciências da computação e a inteligência artificial, Arlindo Oliveira afirma que a análise de dados médicos e clínicos poderá dar respostas essenciais sobre o novo coronavírus, desde logo “porque ataca com tão grande ferocidade os mais velhos”.
O trabalho que já se está a fazer nesta área permitirá identificar melhor onde estão os maiores riscos de contrair a covid-19 e quais os fatores genéticos ou comportamentais determinantes, afirma.
Quanto aos avanços em tecnologias como a georreferenciação para rastrear contactos, “dependerão sempre da salvaguarda da privacidade” e não é claro sequer que funcionem para o efeito pretendido.
“Para já, os dados não são conclusivos quanto à sua utilidade. Para já, nem toda a gente as irá utilizar. Depois, podemos vir a concluir que saber onde é que toda a gente anda ou com quem contacta só resulta numa quebra de um ou dois por cento no contágio, portanto pode nem valer a pena”, afirmou.
Elvira Fortunato, por seu turno, concorda que avanços tecnológicos como esses têm “sempre um lado negro e um lado branco” e que deve haver limites.
Duma coisa a investigadora tem certeza: “nunca houve uma interação e integração tão grande entre a indústria e a universidade”, como evidenciam as “reinvenções” de empresas como a que fabricava cotonetes e agora produz zaragatoas para testes de diagnóstico.
Para isso, e porque “a indústria não conseguia sozinha” adaptar-se tão depressa, precisou de chamar as universidades e contar com o “conhecimento adquirido” dos investigadores. “Estas coisas não aconteciam antes. E este vírus não está para acabar”, salienta.
O diretor do Centro de Engenharia e Desenvolvimento de Produtos do CEiiA, Miguel Braga, aponta o projeto do ventilador português Atena como exemplo do que era “altamente improvável” há três meses.
“Dissemos à comunidade médica: ‘sabemos investigar e desenvolver equipamentos para aeronáutica, para a mobilidade, agora ajudem-nos a colocar estas capacidades ao serviço das vossas necessidades para enfrentar a covid-19’. E a comunidade médica trabalhou lindamente connosco”, disse à Lusa.
Empresas como a EDP e instituições como a Fundação Calouste Gulbenkian juntaram-se também ao projeto de criação de um ventilador, um exemplo do tipo de tecnologia sem o qual não se pode imaginar um futuro pós-covid, argumenta.
“Se houve momento em que ficou clara a necessidade de apostar na ciência foi esta pandemia e a forma como apanhou de surpresa o mundo, mesmo os países mais desenvolvidos. Nós temos que nos preparar melhor para uma situação semelhante. Portugal e a União Europeia não podem estar dependentes do fornecimento da China ou de outro país qualquer para ter reagentes ou zaragatoas”, afirmou.
Miguel Braga salienta que a Ciência em Portugal se adaptou “muito rapidamente”, tal como a indústria, mostrando que “a necessidade faz o engenho” e que isso será essencial para o futuro próximo, em que se prevê uma grave crise económica a nível global.
“Temos duas maneiras de reagir a essa crise. Ou nos refugiamos em casa e esperamos que destrua o que tem que destruir para depois regressamos ou antecipamos o que será o mundo depois da crise e começamos já a investigar e a desenvolver”, considera.
A indústria da aviação, por exemplo, é uma das que “terá que se reinventar” para voltar a dar “confiança aos passageiros” e levá-los a voar novamente sem medo de serem contagiados. “Vamos exigir, enquanto consumidores, produtos e serviços com mais qualidade e mais seguros. E é a ciência que tem condições para os criar”, salienta.
Para o administrador do CEiia e ex-reitor da Universidade do Minho António Cunha, a ciência dos próximos anos “terá que ser mais pragmática” pois a pandemia veio evidenciar que “as prioridades mudam”. “Obriga-nos a pensar a ciência, tanto a fundamental como a aplicada, para enfrentar as necessidades efetivas das pessoas”, disse à Lusa.
O investigador da área de Engenharia de Polímeros admite que “talvez algumas áreas fiquem para trás porque a Saúde vai ser a prioridade mais visível”. Prova disso é o facto de “quase todas as atuais chamadas de financiamento serem específicas da área da covid-19”.
“Isso vai passar, mas o mundo não vai ficar como dantes. Em todas as áreas, não só a ciência, vai mudar a maneira como se olha para o futuro. Nos transportes, nas lojas, que vão ter que se reinventar na forma como vão chegar ao consumidor, e para isso terá que haver nova tecnologia”, considera.
Elvira Fortunato admite ter ficado “com mais orgulho em Portugal” desde o início da pandemia, frisando que para a comunidade académica há práticas que foram impostas pelo confinamento que devem ficar.
“Ainda vivíamos com muito papel, com muita carga burocrática. Agora, foi desmaterializada uma série de coisas. Estão a fazer-se provas de doutoramento e de agregação ‘online’ e, embora as aulas práticas não possam ser substituídas, percebemos que as aulas teóricas podem ser dadas à distância com qualidade e com avaliação”, exemplificou.
A covid-19, doença provocada pelo novo coronavírus, já provocou em todo o mundo mais de 230 mil mortes e infetou cerca de 3,2 milhões. Em Portugal, os últimos dados oficiais registam 1007 mortos associados à covid-19 e mais de 25.000 pessoas infetadas.
// Lusa