Investigador acusado de assédio pediu ao Ministério Público para ser arguido: quer ter acesso aos documentos e meios de prova contra ele próprio.
O investigador Boaventura de Sousa Santos revelou que interpôs uma ação judicial contra a direção do Centro de Estudos Sociais de Coimbra e que solicitou ao Ministério Publico para ser constituído arguido no âmbito do inquérito aberto após o relatório de comissão independente.
Numa entrevista concedida à agência Lusa, o sociólogo explicou que a ação judicial contra a direção do Centro de Estudos Sociais (CES) de Coimbra foi interposta há cerca de um mês, com o objetivo de ter acesso aos documentos e meios de prova que alegadamente possam existir contra si.
“Está pendente, neste momento, para obrigar a ter acesso aos documentos. Não é uma condenação da direção do CES, é para obrigar a direção a disponibilizar os documentos das denunciantes, que romperam o anonimato”, esclareceu.
Três investigadoras que passaram pelo CES denunciaram situações de assédio num capítulo do livro intitulado “Má conduta sexual na Academia – Para uma Ética de Cuidado na Universidade”, o que levou a que os investigadores Boaventura de Sousa Santos e Bruno Sena Martins acabassem suspensos de todos os cargos que ocupavam no CES, em abril de 2023.
O CES acabou por criar, uns meses depois, uma comissão independente para averiguar as denúncias, tendo divulgado o seu relatório quase um ano depois, em 13 de março, que confirmou a existência de padrões de conduta de abuso de poder e assédio, por parte de pessoas em posições hierarquicamente superiores, sem especificar nomes.
De acordo com o relatório então divulgado à comissão independente foram denunciadas 14 pessoas, por 32 denunciantes, num total de 78 denúncias.
Uma semana depois, um grupo de 13 mulheres instou, num documento assinado por todas, as autoridades judiciárias portuguesas a investigarem com urgência as alegadas condutas criminosas mencionadas no relatório.
“Se a justificação para não fornecerem os depoimentos era que as denúncias eram anónimas e era preciso respeitar o anonimato, estas denunciantes não respeitaram anonimato porque puseram o nome e, portanto, já não há anonimato. Pelo menos nestes casos, os depoimentos deveriam ser tornados acessíveis”, alegou Boaventura de Sousa Santos.
De acordo com o professor catedrático, diretor emérito daquela organização, o acesso a estes depoimentos é fundamental para saber do que é acusado e, assim, poder defender-se.
“Neste dia da nossa entrevista [quinta-feira], estou a pedir ao Ministério Público para que seja constituído arguido, para ser investigado. Faço-o porque estou tranquilo, estou inocente e sei que posso demonstrar a minha inocência”.
Só sendo constituído arguido, defendeu, poderá ter acesso às alegadas acusações que terão sido feitas contra si.
“De outra maneira, não tenho acesso a elas. Fui obrigado a pedir para ser constituído arguido e faço-o com todo a hombridade”, acrescentou.
À Lusa, Boaventura de Sousa Santos avançou ainda que está a instaurar ações de tutela de personalidade contra todos os que puseram em causa o seu direito fundamental ao bom nome.
“O meu bom nome e a minha reputação foram atacados e a minha saúde também: foram postos em causa de uma maneira praticamente irreversível. Fui linchado na praça pública: foi o que nós podemos dizer um assassinato de caráter”, lamentou.
Segundo o sociólogo, todas as pessoas que contribuíram para que o seu nome fosse “posto em causa sem provas, sem documentos e sem justificação”, serão objeto dessas ações.
“Isso não se faz em nenhuma parte do mundo, na praça pública, durante tanto tempo e de uma maneira impune. Isto sem ter havido um processo disciplinar interno na instituição [CES]”, sustentou.
Boaventura aproveitou para aludir a um caso de assédio que terá ocorrido noutra instituição universitária e que foi tornado público na mesma altura, mas em que não foi dada a conhecer a identidade dos envolvidos.
“Criaram-se comissões internas e foi resolvido. Não foi isso que foi decidido no meu Centro: foi deixar que a minha reputação, que não é apenas nacional, é internacional, fosse posta em causa e profundamente afetada ao longo deste tempo”, concluiu.
“Golpe de Estado”
Boaventura lamentou o “golpe de Estado” que aconteceu no Centro de Estudos Sociais de Coimbra, no âmbito deste processo.
“Se [o CES] fosse uma instituição política, diria que houve um golpe de Estado, com aparência democrática. Obviamente que não vou de maneira nenhuma pôr em causa a legalidade da direção e do conselho científico, que foram democraticamente eleitos. Mas ponho em causa a legitimidade do conselho científico, porque era o mesmo que estava naquele momento [da denúncia] e não trataram imparcialmente, não o fizeram, e estão a fazê-lo desta forma para fazer valer aquela narrativa que é a narrativa das denunciantes e não uma narrativa que seja imparcialmente avaliada”.
Boaventura de Sousa Santos disse ter sido transformado num bode expiatório e, de alguma maneira, como a origem do mal de uma “instituição de excelência, de uma instituição inclusiva”.
“Em 2020, o CES tinha 17% dos doutoramentos da Universidade de Coimbra. Há um estudo que mostra que as mulheres estão em maioria nos órgãos de gestão e de coordenação do CES. 81% dos projetos de produção científica são de mulheres, 61% da coordenação dos nossos projetos são de mulheres. Portanto, temos uma instituição inclusiva extremamente avançada e extremamente exigente”.
E esta exigência, defendeu o investigador titular de 21 doutoramentos honoris causa, levou a que muitos não conseguissem acompanhar a investigação ali criada.
Boaventura de Sousa Santos encontra, por isso, duas razões principais para este “golpe de Estado” e para estas acusações mediáticas, que o tiveram como alvo.
“A minha própria orientação científica não é do agrado de muita gente dentro do CES. Mas o CES sempre foi um espaço em que se respeitou o pluralismo. E isto indigna-me e é um a situação extremamente preocupante”.
O sociólogo recordou ainda ser um intelectual público, mas um intelectual público de esquerda.
“Todos sabemos, mas não tenho igreja, nem partido. Portanto, sou um alvo fácil para uma guerra mediática, porque sou incómodo nas minhas posições independentes. Desde que rebentou a guerra na Ucrânia, que sempre me insurgi. Sempre fui adepto das independências. Portanto, critiquei e defendi a paz. Mas, neste momento, em Portugal, lutar pela paz é quase um insulto, porque realmente, como vê as notícias, são todas para que os orçamentos dos Estados aumentem mais os seus gastos militares”.
ZAP // Lusa