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Incêndios, Identidade e Património

Paulo Novais / Lusa

Depois da perda das vidas humanas, o maior dano que nos pode causar a catástrofe dos incêndios é a destruição do nosso património comum, o nosso património histórico. A privação da história e da identidade pode ser devastadora para uma população.

As Igrejas sempre foram um porto seguro, local de refúgio e de segurança, não só do ponto de vista espiritual, como também do ponto de vista físico. Em séculos de história, invasões e catástrofes, o interior das Igrejas sempre se apresentou como o melhor dos abrigos.

Mesmo nos dias de hoje – e por estranho que a alguns possa parecer – a Igreja continua a ser a solução encontrada para proteção e guarida.

Foi assim, ainda por estes dias, nas aldeias de Vale Frechoso e de Ermida. A devastação causada pelos incêndios e o sentimento de segurança gerado pela centralidade e proteção que o edifício confere, fez com que essas igrejas fossem o abrigo para centenas de habitantes.

Em Vale Frechoso, no concelho de Vila Flor, cerca de uma centena de pessoas refugiou-se durante dois dias, enquanto o incêndio cercava e ameaçava a localidade. Com os acessos cortados, sem eletricidade e sem comunicações, foi a igreja, no centro da aldeia, a solução encontrada pelos habitantes para se protegerem.

Também em Ermida, no concelho de Ponte da Barca, a população se abrigou na igreja local, como forma de se protegerem do violento incêndio que durante dias deflagrou no Parque Nacional da Peneda Gerês. Não existindo condições para regressarem às suas casas, foi aí que foram fornecidas refeições, água e todos os cuidados necessários à população.

Mas, se na maioria dos casos é este património comum que nos abriga, outros há em que esse próprio património fica mais vulnerável e exposto ao risco de perda. Capelas e ermidas, muitas delas remotas, são alvo fácil do fogo e a sua proteção é praticamente impossível.

Foi o aconteceu, também por estes dias, em Leomil, no concelho de Moimenta da Beira, e em Cedovim, no concelho de Vila Nova de Foz Côa: as suas capelas foram integralmente consumidas pelas chamas, incluindo os adornos e andores que na capela seiscentista de Cedovim estavam já preparados para a procissão religiosa da freguesia.

O golpe final no sentimento de pertença coletiva, de uma população que já quase tudo tinha perdido a nível individual.

Mas não só estas pequenas localidades que sofrem perdas com este tipo de tragédia. A escassos 100 km da fronteira portuguesa, em Espanha, uma das mais antigas explorações romanas de ouro, “Las Médulas”, classificadas como Património Mundial da UNESCO, sofreram danos irreversíveis, com os violentos incêndios deste verão. Uma perda identitária, de escala mundial.

A tragédia causada por este tipo de fenómenos, seja eles mais ou menos naturais, causam perdas insupríveis. Só este ano, e até à data, foram contabilizadas nos incêndios, quatro vítimas mortais.

Se a esta perda maior, somarmos todo o outro tipo de perda, sejam elas relacionadas com a natureza ou com o nosso património construído, percebemos o quão devastadoras são estas catástrofes.

Eu diria que, depois da perda das vidas humanas, é a destruição deste património comum – o nosso património histórico – a perda que maior dano nos pode causar. A privação da história e da identidade pode ser devastadora para uma população.

Ver desaparecer o legado que foi deixado pelas anteriores gerações, acompanhado pela sensação de impotência para com a sua proteção e posterior recuperação desse património, reflete-se numa perda identitária e cultural completamente irreversível.

Pessoalmente, e enquanto profissional do sector, sinto-me completamente incapaz para prevenir este tipo de fatalidade. Não existem medidas, sob o ponto de vista da conservação preventiva de monumentos, que possam acautelar estas tragédias.

Terá de ser algo muito maior. Algo coletivo. Algo que passe pela educação – a jusante – e que termine, numa fase a que queremos que nunca chegue, na justiça.

Uma palavra final de conforto e coragem para com estas pequenas populações que viram desaparecer aquilo que é o seu património identitário: enquanto houver memória e força de trabalho é possível recuperar o nosso património comum!

Carlos Costa, ZAP //

Carlos Costa

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