A Paz não dá jeito nenhum, camarada Putin

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Yuri Kochetkov / EPA

Cidadãos em Moscovo numa paragem de autocarro junto a anúncios de recrutamento para o Exército Russo, 19 de março de 2025

Um cessar-fogo e o fim da Guerra na Ucrânia significariam que centenas de milhares de soldados russos regressariam subitamente a casa. Moscovo está a preparar-se para o caos, e o sistema pode entrar em colapso, diz uma fonte do Kremlin.

É ainda incerto que se venha a concretizar a curto prazo um potencial acordo de paz na Ucrânia — que, no entanto, parece mais próximo do que nunca.

Na semana passada, após um encontro na Arábia Saudita entre delegações dos EUA e da Ucrânia, Kiev terá apoiado uma proposta de Washington para um cessar-fogo de 30 dias.

Depois de inicialmente ter rejeitado o plano norte-americano, o presidente Vladimir Putin, após uma conversa telefónica “muito produtiva” com Donald Trump, terá também aceitado um cessar-fogo limitado — embora com condições, entre as quais a suspensão da ajuda militar à Ucrânia.

Este domingo, o enviado especial dos EUA, Steve Witkoff, sugeriu que um acordo poderia ser alcançado dentro de “semanas” e deu a entender que estariam a ser discutidas uma série de possíveis concessões por parte da Ucrânia.

Se os tímidos passos que os diplomatas têm estado a dar nos bastidores conduzirem efetivamente a um acordo de paz, os passos que se seguem serão dados pelos soldados dos dois países — que darão corda às botas num ansiado regresso a casa.

E isso poderá representar um enorme problema para Vladimir Putin: um cessar-fogo e o fim da Guerra na Ucrânia significaria que centenas de milhares de soldados russos traumatizados estariam subitamente de volta ao lar.

De acordo com o portal independente Meduza, o Kremlin já está a preparar-se para o enorme desafio que a sociedade russa terá de enfrentar quando a guerra terminar. “Se milhares de pessoas regressarem da frente de combate ao mesmo tempo, o sistema pode entrar em colapso“, diz uma fonte do governo russo.

Especialistas que trabalham em programas de reabilitação para veteranos de guerra russos, citados pelo portal, consideram que muitos dos soldados regressados deverão sofrer de stress pós-traumático, e podem apresentar tendências violentas.

Estes especialistas preveem que o afluxo maciço de tropas de regresso a casa levantará uma série de dificuldades e problemas sociais importantes. Em primeiro lugar, alertam, é  provável que os ex-combatentes recorram ao álcool ou às drogas para lidar com o seu trauma físico e emocional.

“O primeiro ano após a guerra será um ano de consumo excessivo de álcool“, disse uma fonte do Ministério do Trabalho da Rússia. Um especialista em reabilitação de veteranos observou que muitos dos que já regressaram com ferimentos, danos físicos ou membros perdidos estão a lutar para se reintegrarem na vida civil – especialmente nas zonas rurais – e começaram a beber muito.

Uma fonte governamental afirmou que muitos veteranos regressam da guerra com um profundo sentimento de mágoa: “Eu sou um herói, lutei por vocês e vocês são uns cobardes inúteis que ficaram para trás“.

Yuri Kochetkov / EPA

Turistas na Praça Vermelha, em Moscovo, 21 de março de 2025

Desemprego, criminalidade

De acordo com os especialistas citados pelo Meduza, o regresso a casa irá também fazer aumentar o desemprego, o número de gravidezes não planeadas e os casos de violência doméstica, além de causar problemas relacionados com o endividamento dos ex-combatentes.

Muitos soldados, que durante a guerra tiveram direito a contratos militares com generosos soldos, que em alguns casos podiam chegar a milhões de rublos (equivalentes a dezenas de milhares de euros), podem não estar agora inclinados a aceitar alegremente empregos civis mal pagos.

Segundo um funcionário federal russo citado pelo Meduza, o regresso a casa irá deixar sem rendimento estável e psicologicamente traumatizados muitos indivíduos habituados à violência e familiarizados com armas — o que poderá conduzir a um aumento da criminalidade.

À medida que a sua qualidade de vida diminui, os especialistas esperam também que os antigos soldados contraiam empréstimos em massa, e enfrentem dificuldades no  local de trabalho.

Também os empregadores terão que enfrentar desafios, diz o Meduza, uma vez que são legalmente obrigados a manter os postos de trabalho abertos para os soldados que regressam.

Os veteranos serão difíceis de despedir, mas muitos podem ser considerados “empregados problemáticos” devido ao alcoolismo e ao comportamento antissocial. “Na melhor das hipóteses, serão pagos apenas para se manterem afastados do local de trabalho”, prevê uma fonte do Ministério do Trabalho.

As autoridades russas parecem reconhecer a dimensão dos desafios que o regresso dos soldados irá colocar, diz o Meduza.

Vladimir Putin encarregou a sobrinha, Anna Tsivileva, de coordenar o apoio aos antigos soldados, tendo-a nomeando vice-ministra da Defesa e diretora da Fundação Defensores da Pátria, financiada pelo Estado.

Os veteranos da guerra na Ucrânia não podem acabar à deriva como os veteranos da guerra afegã dos anos 90“, disse um funcionário envolvido na criação da fundação.

Mas não vai  ser propriamente fácil dar apoio psicológico a estes ex-combatentes: há falta de psicólogos na Rússia, e estes psicólogos têm que ter formação especializada para lidar com soldados desmobilizados que sofrem de stress pós-traumático.

Algumas universidades russas estão agora a formar estudantes para lidar com esta condição. “Mas trata-se de jovens estudantes do sexo feminino. Acham mesmo que um soldado mais velho e traumatizado pela guerra as vai levar a sério? Claro que não”, disse um funcionário do Ministério do Trabalho.

As notícias de que os tambores da guerra se vão calar levantam assim preocupações com os enormes desafios sociais e económicos que a Rússia — como também a Ucrânia, naturalmente — terão que saber enfrentar.

Mas, para todos os que sofrem com os incomparavelmente mais graves problemas causados pelos horrores da guerra, estas notícias serão recebidas com alegria.

Vladimir Putin, no entanto, poderá não ficar totalmente feliz com o fim da  “operação militar especial” que lançou em fevereiro de 2022, que entretanto se transformou num duro conflito que parecia (ou ainda parece) não ter fim.

Na altura da invasão da Ucrânia, justificada por Putin com a necessidade de “desmilitarizar e desnazificar” o país vizinho e proteger os seus cidadãos nas províncias separatistas, a economia da Rússia mostrava sinais preocupantes, as condições de vida dos russos pioravam e a sociedade mostrava-se inquieta.

O estrondo dos tiros de canhão ajudou a abafar as tímidas vozes dissonantes que se começavam a ouvir nas ruas de Moscovo, e as sanções económicas impostas pelo ocidente mascararam a situação económica em que o país já se encontrava.

Para Vladimir Putin, a Guerra deu muito jeito — e provavelmente,  nos corredores do Kremlin, haverá funcionários federais a sussurrar entre dentes que a Paz não dá jeitinho nenhum.

Armando Batista, ZAP //

20 Comments

  1. Desengane-se quem pensa que a guerra vai acabar.
    Isto é tudo fogo de vista e apenas servirá para a Rússia se rearmar e o Trump, quando der por ela, já vai ser tarde para a América.
    Todo o mundo tem noção que os objectivos da Rússia na Ucrânia não foram cumpridos, até mesmo o Putin.

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  2. Se a asneira matasse o autor deste “artigo” já estava morto. Não é a Rússia que não quer a paz, é a Ucrânia e a Europa. Para fazer a paz basta reconhecer o direito dos russos do leste ucraniano à autodeterminação, tal como se reconheceu esse direito aos albaneses do Kosovo. E basta impedir que a Ucrânia possa fazer parte de uma aliança agressiva que só tem como objetivo afrontar a Rússia. Quando a Ucrânia e a Europa aceitarem estas legítimas reivindicações, a guerra acaba nesse mesmo dia.

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    • A diferença é que no caso do Kosovo, teve intervenção da Nato. Agora neste caso são os russos. Infelizmente as pessoas são demasiado inocentes e ignorantes para perceber estas coisas, e lá está outro comuna a falar, não é.

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    • Ainda bem que ainda vai aparecendo alguém que tem coragem para abordar esta questão como ela deve ser abordada. Talvez com mais pessoas com a coragem do Nuno as mentalidades vão mudando e os carneirinhos sigam outro caminho.

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    • Nada disso….. basta reconhecer o direito dos russos de toda a Ucrânia à autodeterminação e dar de bandeja a Ucrânia a Rússia e passado uns anos o resto da antiga URSS, claro que a opinião da maioria da população que habita esses países pouco importa dado que para si a mãe Rússia tem sempre razão.

      • Joe, talvez não tenha percebido o significado do prefixo “auto” em autodeterminação. No Leste da Ucrânia os russos estão em maioria e ninguém lhes perguntou se queriam fazer parte de uma Ucrânia cujas fronteiras tinham sido arbitrariamente definidas pela União Soviética, aquela grande democracia…A sua vontade de terem um país deles é tão legítima como a dos albaneses do Kosovo, que eram a maioria no Kosovo mas uma minoria no conjunto da Sérvia. Respeitou-se a vontade dos albaneses do Kosovo, mas ignora-se a vontade dos russos do leste da Ucrânia. Sim, porque isto de direitos pode ser para os albaneses mas não é com certeza para os russos…

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          • …mas porque é que os albaneses que viviam na Sérvia se estavam mal não regressavam á mãe Albânia…

            Hipocrisia, hipocrisia, hipocrisia…

  3. Mais um propagandista russofóbico! Querem ganhar a guerra nem que seja no plano ficcional. Artigo lamentável, cheio de fontes por confirmar e por identificar. Pura propaganda anti-rússia

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    • Caro leitor,
      A essência deste artigo é baseada em informação recolhida numa reportagem do portal Meduza, fonte principal do texto e que como tal está claramente identificada.
      O Meduza é um portal independente e reputado, que o ZAP cita sempre que entende pertinente.
      A referência ao título de uma das notícias do Meduza, feita num comentário por outro leitor, omite que se trata de uma citação de um dissidente, proferida na declaração que fez na altura da leitura da sentença em que foi condenado a 16 anos de prisão por declarações contra a guerra.
      Além da informação recolhida no Meduza, o artigo cita uma transcrição divulgada pela CNN, e um outro artigo do ZAP sobre o telefonema entre Trump e Putin — e este cita uma notícia da Reuters; um outro artigo do ZAP sobre o aumento de taxas de juro, que cita o The Wall Street Journal; um artigo em que Vladimir Putin reconhece que “as condições de vida dos russos pioraram nos últimos anos” (informação da Agência EFE), e um artigo sobre as eleições em Moscovo, que cita dados da agência russa Interfax — fundada em 1989 e que mantém a sua sede em Moscovo.
      As fontes de informação do artigo estão claramente identificadas no texto, com links para os textos originais.
      Reputamos o Meduza, a CNN, a Reuters, o Wall Street Journal ou a EFE como fontes de informação credíveis — mais, aliás, do que o Pravda, a RT e a Sputnik News, canais oficiais de propaganda do estado russo, mas que curiosamente o ZAP também cita, sempre que tal seja pertinente, e sem que isso aparentemente levante questões aos nossos leitores.
      Ao contrário do Pravda, da RT e da Sputnik News, que o fazem assumidamente, o ZAP não faz propaganda. O ZAP informa os leitores, com base em dados das muitas e variadas fontes a que tem acesso.
      A informação que o ZAP entrega aos leitores é a que é; não nos preocupa se num dia somos um “pasquim de extrema direita”, noutro um “outlet de extrema esquerda”, e num terceiro “propagadistas russofóbicos”.
      Nem nos intimida demasiado que quando a informação não agrada, se pretenda matar o mensageiro — como parece querer fazer um outro leitor, num comentário mais acima.

      • Caro Armando Baptista,

        Obrigado por ter decidido dialogar connosco. Não é costume e por isso será certamente muito apreciado. E muito do que diz faz sentido. Mas eu vou pegar nas primeiras linhas do seu artigo:

        “Um cessar-fogo e o fim da Guerra na Ucrânia significariam que centenas de milhares de soldados russos regressariam subitamente a casa. Moscovo está a preparar-se para o caos, e o sistema pode entrar em colapso…”

        Esquece que na Ucrânia só combatem soldados contratados e voluntários. O seu regresso a casa não causará por isso qualquer problema. A Rússia tem uma taxa de desemprego muito baixa, há falta de trabalhadores a todos os níveis, e estes desmobilizados integrar-se-ão sem problemas, e a sua participação na guerra não lhes causou quaisquer traumas. Estiveram na guerra por decisão própria. Por isso a paz não causará quaisquer problemas a Putin. Vai é causar problemas à Europa.

        Não terei alguma razão?

        • Caro leitor,
          Obrigado pelo seu comentário.
          Segundo creio, o resultado habitual de uma guerra é efetivamente uma diminuição significativa da população dos países nela envolvidos, nomeadamente na faixa etária dos cidadãos que são enviados para o campo de batalha – que coincide grosso modo com a faixa etária da população ativa, que estaria, em tempo de paz, no mercado de trabalho. O problema da Rússia (como da Ucrânia) não será o do desemprego, mas, como diz, o da falta de mão de obra.
          Ora o que o artigo refere não é a falta de oportunidades de emprego para os soldados que sobreviverem à guerra, é a sua dificuldade de fixação e de adaptação aos empregos (alguns dos quais estão até à sua espera desde o início do conflito), a diminuição do seu rendimento, e diversos outros problemas sociais causados por traumas resultantes da experiência de combate.
          Também segundo creio, o PTSD não é um síndrome exclusivo de combatentes em serviço militar obrigatório. São conhecidos os problemas de adaptação dos militares norte-americanos envolvidos nas guerras do Iraque e Afeganistão, e as forças armadas dos EUA são, há décadas, compostas por militares profissionais.
          Claro que, se partirmos da sua premissa de que, pela primeira vez na história, os soldados regressam alegremente de uma guerra sem quaisquer traumas e se integram sem problemas na sociedade, terei que lhe dar alguma razão. Talvez o recente desanuviamento das relações entre Rússia e EUA permita a Putin ensinar a Trump como é que isso se faz… 🙂

  4. Fui dar uma espiadela no tal portal independente Meduza.
    Depois que li a manchete “Morte a Putin, o novo dissidente da era soviética do novo Hitler”, fiquei com a impressão de que não é um portal muito imparcial.
    Será?!?

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