O surpreendente lado negro de doar roupas para caridade

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Quando deixa um saco de roupas de que já não precisa numa loja de solidariedade, pode parecer que está a fazer simples gesto de bondade. No entanto, um número crescente de estudos sugere que o percurso das roupas doadas é muito mais complexo — e preocupante — do que imagina.

Muitas lojas e centros de recolha de solidariedade estão a ter dificuldades em lidar com o volume enorme de roupas que recebem.

Embora os artigos mais apelativos possam ser vendidos localmente, uma parte significativa das doações não pode ser aproveitada, relata o Earth.com.

As peças que não são vendáveis são frequentemente embaladas em fardos e enviadas para o estrangeiro, uma prática que melhora artificialmente os números de resíduos locais sem resolver realmente o problema.

Em alguns casos, os artigos doados são simplesmente descartados.

Um estudo conduzido por investigadores da Universidade de Genebra, na Suíça, e publicado em outubro na Nature Cities, acompanhou doações de roupas em nove grandes cidades, incluindo Austin, Toronto, Melbourne e Oslo.

Os resultados do estudo revelaram um padrão comum: doações excessivas, procura local limitada e exportações massivas de roupa usada. Na Noruega, quase toda a roupa recolhida sai do país, enquanto os EUA e a Austrália exportam também enormes quantidades das doações recebidas.

As organizações de solidariedade, tradicionalmente focadas no bem-estar social e na angariação de fundos, não estão preparadas para gerir volumes tão grandes de têxteis.

“As organizações de solidariedade são movidas por valores de bem-estar social, e precisam de angariar fundos para os seus programas. No entanto, as suas operações não estão equipadas para lidar com o volume de têxteis usados que precisam de ser reutilizados e reciclados”, explica Yassie Samie, investigadora da RMIT University, em Melbourne, na Austrália.

O desperdício têxtil global atinge atualmente dezenas de milhões de toneladas por ano, grande parte proveniente de cidades ricas com elevado consumo e rápida rotatividade de roupas.

No cerne do problema estão dois fatores-chave: o consumo excessivo e a oferta exagerada. A moda barata e de baixa qualidade incentiva as pessoas a comprar mais do que necessitam, usar os artigos apenas algumas vezes e descartá-los.

A qualidade destas roupas é frequentemente tão baixa que não servem para comprar em segunda mão ou para reciclagem, o que limita o seu potencial de reutilização. Ironia das ironias, a enxurrada de roupas baratas doadas pode até prejudicar pequenos negócios de revenda, que muitas vezes dependem de artigos importados de maior qualidade.

Segundo os autores do estudo, reduzir o consumo é tão importante quanto reciclar: tentar criar uma economia circular sem abordar o consumo excessivo é como tentar tirar água de um barco sem reparar o furo.

O estudo recomenda também intervenções ao nível das cidades. Os municípios devem tratar os têxteis como resíduos que exigem gestão adequada, com sistemas locais de recolha, triagem e processamento.

Além disso, salientam os investigadores, incentivar as reparações e trocas pode prolongar a vida útil das roupas. Limitar a publicidade pública da fast fashion e promover alternativas sustentáveis pode ajudar a alterar o comportamento dos consumidores.

Sem mudanças fundamentais, a cultura da moda descartável continuará a sobrecarregar as organizações de solidariedade e os sistemas globais de gestão de resíduos — e a tornar inútil o seu gesto de solidariedade ao doar uma peça de roupa que já não usa.

ZAP //

1 Comment

  1. Reduzir o consumo é tão importante quanto reciclar. Pois é, mas os políticos, os economistas e os CEO querem é que a gente consuma, para a economia crescer e o PIB valorizar. Poupar não dá lucros nem votos.

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