Quando um golo de 1999, marcado por Charles Amoah, origina uma longa conversa. Duarte Monteiro protagoniza uma partilha emocionante.
O FC St. Gallen 1879 é um clube que passa ao lado de quase todos os portugueses. Mas há pelo menos um português que está sempre atento a este emblema da Suíça.
Duarte Monteiro, um dos jornalistas mais conhecidos no zerozero e sempre ligado ao desporto na sua vida jornalística, passou a sua infância e o início da sua adolescência na Suíça. Vivia quase ao lado do estádio do St. Gallen, clube do qual cedo se tornou adepto.
Aos 13 anos, acabadinhos de fazer, não esteve no estádio a ver um extraordinário St. Gallen-Basileia, no dia 24 de Agosto de 1999. Um jogo que teve um final impróprio para cardíacos e que foi importante numa caminhada histórica do clube da casa.
Duarte, adepto fervoroso e assíduo do St. Gallen, veio para Portugal nesse dia. Não viu o jogo.
E nunca tinha visto o golo do empate. Durante 25 anos. Até ao sábado passado, quando o próprio clube publicou um vídeo.
Nunca vi este golo. Até hoje. A história tem tanto de bela como de dolorosa, porque marca uma mudança decisiva na minha vida. A 24.08.99, à hora que Charles Amoah levava 11 mil pessoas ao êxtase no Espenmoos, eu estava no carro dos meus pais, às portas da cidade, a caminho de 🇵🇹+ https://t.co/EJqJVzGsbc
— Duarte Monteiro (@espenmoos1879) August 24, 2024
ZAP – Este excerto que publicaste no X significa o quê?
Duarte Monteiro – É realmente uma história que, como eu disse nesse post, tem tanto tem tanto bonita como como de dolorosa. Mais bonita que dolorosa, mas a parte dolorosa aqui é na verdade o que conta. Esse golo acontece na época 1999/2000, na Liga Suíça, e é golo do St. Gallen. É um golo numa época muito importante na história do St. Gallen, porque é um dos golos que marca a caminhada para o título nessa época. O St. Gallen só foi campeão duas vezes: em 1904 e nessa época 1999/2000. Não vi nenhum deles. O primeiro por razões óbvias, o segundo por razões pessoais e familiares. Eu sou adepto do St. Gallen há muitos anos. Os meus pais foram imigrantes na Suíça durante 16 anos; eu não nasci na Suíça mas praticamente tinha um mês de vida quando quando fui para lá. Desde muito cedo comecei a gostar de futebol, obviamente por influência do meu pai, e do St. Gallen, porque o Espenmoos, o antigo estádio do St. Gallen, ficava a meio quilómetro de minha casa, se tanto. Mal comecei a caminhar, o meu pai começou-me a levar a esse estádio. É o primeiro grande amor futebolístico que eu tenho, e foi o clube que me introduziu a paixão do futebol e sobretudo a paixão pelo estádio.
ZAP – Numa realidade que é bem diferente da nossa: o futebol suíço. No ambiente, nos adeptos…
Duarte – Completamente. Isto não é necessariamente uma crítica ao adepto português e à realidade de Portugal, que nos impõe um apoio quase exclusivo a três grandes clubes. Na Suíça, não: tu de facto apoias o clube da tua cidade e cresces a aprender a gostar desse clube, independentemente desse clube ganhar ou não títulos.
ZAP – Mas não há nenhum clube maior do que os outros? Ou dois, ou três?
Duarte – Há grandes clubes da Suíça, indiscutivelmente: o Grasshoper, que ainda é o clube com mais campeonatos ganhos na Suíça, o Basileia, que dominou durante muitos anos já neste século, o Young Boys, que é agora quase crónico campeão, ou o Servette. Mas a Suíça tem vivido períodos de vários grandes clubes.
ZAP – Dinastias?
Duarte – Várias dinastias, exactamente.
ZAP – Agora sim, vamos ao tal golo, à tal época 1999/2000. Que jogo é este, que golo é este, e qual era o teu contexto naquele dia?
Duarte – Primeiro, o contexto: o St. Gallen costumava lutar pela manutenção. Volta e meia lá conseguia a presença numa Taça Intertoto. Mas sempre muito longe de chegar ao título. Nessa temporada, 1999/2000, tínhamos o treinador Marcel Koller, que depois foi selecionador austríaco; e começou a criar ali uma equipa que, de repente, pensámos todos: calma, esta equipa é bocadinho diferente das outras.
ZAP – Mas com reforços ou com gente da casa?
Duarte – Com reforços e com gente que já lá estava. Nós percebemos que havia ali alguma coisa que podia ser ligeiramente diferente dos outros anos. Nós antes éramos goleados em casa, eu lembro-me de uma goleada em casa em que perdemos com o Grasshoper por 8-0.
ZAP – Mas em hóquei em patins?
Duarte – É, hóquei em patins… (risos)
ZAP – E o que é que acontece nesse dia 24 de Agosto de 1999?
Duarte – É o dia em que os meus pais decidem regressar a Portugal de vez. Eu já estava naquela onda de entusiasmo do St. Gallen. As memórias que eu vou guardar para sempre desse dia, ou até dos dias anteriores, é de pedir ao meu pai se dava para viajar depois do jogo com o Basileia. Mas o meu pai negou-me essa última ida ao Espenmoos. E eu lembro-me que passei o dia completamente amuado. Mais do que amuado: triste. Estávamos a arrumar as coisas no carro. Entretanto metemo-nos no carro, começámos a sair e e tenho uma memória de estar a sair e de ver os holofotes do estádio acesos e é uma das coisas… Ai, até quase estou a ficar emocionado agora…
(ligeira pausa)
…lembro-me de ver aquilo e seguir viagem. E, com uma internet muito rudimentar na altura, só passados seis ou sete anos é que comecei a ter a possibilidade de ver resumos, com uma qualidade absolutamente terrível, mas eu nem sabia como é que eram os golos nem nada, porque aquilo era tudo pixelizado. E entretanto a vida fez-se. Eu sei que, no final desta temporada, o St. Gallen foi campeão. Passaram anos e anos, a internet foi-se desenvolvendo eu fui vivendo a minha vida. E aquele jogo foi-se esquecendo na minha memória. Como é lógico, não é?
ZAP – Já agora, o contexto: esse jogo acabou 1-1 e foi um golo marcado mesmo aos noventa e qualquer coisa minutos.
Duarte – 93. O Basileia faz 1-0 aos 91 minutos, e na altura pensou-se: pronto, vai ser a primeira derrota da temporada, lá vamos nós outra vez…
ZAP – Deixa-me corrigir aí, dever profissional: era a segunda derrota da temporada. Tinham perdido com o Aarau, fora.
Duarte – Exactamente! Eu fui a esse jogo, foi fora e ficou 1-0! Fui precisamente porque já sabíamos que íamos embora. Os meus pais colocaram-me no autocarro dos adeptos do St. Gallen, entregaram-me a uma senhora que ia no autocarro e eu fui sozinho a esse jogo, e depois regressei já noite dentro.
ZAP – Já agora, para acumular em relação à tua pontaria: estava aqui a olhar para os jogos todos do St. Gallen nessa época, e esse jogo com o Basileia, durante o qual tu estavas a vir para Portugal, tinha sido adiado. Nem ia ser nesse dia.
Duarte – Nem era para ser nesse dia, vês? Já não sabia disso. Para voltar ao centro da questão: passados estes anos todos, há uns dias, aparece-me aquele vídeo. E todas essas memórias vêm à cabeça porque eu lembro-me do dia. E eu nunca tinha visto o golo do Amoah. Em virtude dessa decisão dos meus pais, em virtude da tecnologia que não existia naqueles anos, eu só agora é que vi esse golo.
ZAP – Mas há aqui uma pergunta que eu tenho que fazer: em 25 anos, num dia tão marcante para ti, como é que nunca foste ver esse vídeo? Será que há aí uma explicação neurológica, de não querer voltar àquele momento?
Duarte – Não sei! É… Eu sabia como tinha ficado o jogo, eu acompanhei essa época à distância, mas eu não tenho nenhuma explicação para o facto de nunca ter visto esse golo. Eu vi muitos golos depois disso, golos importantes; mas esse golo em específico, no dia em que eu vim embora, por alguma razão difícil de explicar, nunca me cruzei com esse golo. Nunca surgiu. Mas eu acho que esta é a beleza desta história: agora de repente, do nada, estava eu sossegadinho a fazer aquele scroll que basicamente é nada, e aparece-me aquilo e caiu tudo. Aquela memória daquele dia aparece toda. E bateu-me que eu nunca tinha visto o golo. Veio tudo, veio tudo ao de cima.
ZAP – O Basileia nem era o campeão na altura. Mas conseguir aquele empate, além da forma que foi, contra o Basileia, era um bom impulso na altura?
Duarte – Era, era! O St. Gallen era o clube que perdia com quase toda a gente. Era raro nós termos uma época em que as coisas nos corriam bem e em que tu eras capaz de olhar olhos nos olhos perante a grande maioria dos clubes que habitavam na primeira liga Suíça.
ZAP – O St. Gallen é das maiores frustrações ou tristezas que deixaste na Suíça?
Duarte – Ah, sim. É. Indiscutivelmente. É a maior, e talvez a única até. Eu olhando hoje para a minha infância, e para o tempo que passei lá… Ainda hoje acompanho os jogos do St. Gallen, mesmo não vendo a grande maioria, até porque nem tenho forma de ver aqui em Portugal. Acompanho ao minuto, seja onde estiver. É uma coisa que ficou comigo e que eu acho que vai ficar comigo para sempre.
ZAP – Como anda o St. Gallen hoje? Na primeira divisão, espero eu.
Duarte – Sim, já há alguns anos. Foi vice-campeão há poucos anos, foi a duas finais da Taça da Suíça. É um clube muito estabilizado e deixou de ser aquele clube com a corda na garganta constantemente, desportivamente e financeiramente. Conseguiu sobreviver à minha saída da Suíça. Foi menos um adepto na cidade, mas tem tido um adepto em Portugal há 25 anos a acompanhá-lo.
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