A liberdade cognitiva é o direito à autodeterminação sobre os nossos cérebros e implica atualizar o conceito de liberdade para a era digital em que vivemos. E é urgente repensar nos Direitos Humanos aplicados ao uso da tecnologia e inteligência artificial, afirma uma especialista em ética e neurotecnologia.
Através das novas tecnologias é possível rastrear vários aspetos da nossa vida pessoal, como a quantidade de passos que damos, a frequência cardíaca e até a idade vascular.
Mas, à medida que a tecnologia avança a passos largos, há uma nova métrica que poderá tornar-se facilmente acessível – as ondas cerebrais.
Os novos “sensores cerebrais” são já uma realidade promissora, de acordo com Nita Farahany, autora e professora em Ética de Tecnologias emergentes, à BBC Science Focus.
Esta tecnologia faz parte daquilo que é hoje conhecido como “dispositivos vestíveis”, uma nova abordagem da computação que vem redefinir a interação humano-máquina. O exemplo mais comum são os relógios inteligentes, ou smartwatches.
A especialista releva a importância de reavaliar os Direitos Humanos, de modo a prepararmo-nos para o futuro tecnológico que se avizinha.
Há dispositivos capazes de aceder às nossas ondas cerebrais?
Sim, diz Nita Farahany. Existem milhões de dispositivos vestíveis vendidos em todo o mundo. Estes sensores são aplicados no cérebro do consumidor e podem integrar bandanas, capacetes ou até um simples boné.
Através destes dispositivos, é possível rastrear a atividade cerebral e interpretá-la de acordo com um algoritmo. No entanto, a sua capacidade é bastante limitada.
Atualmente, é possível perceber qual o nível de atenção de um indivíduo, o seu engajamento numa determinada atividade, e até verificar se a mente se encontra sob o efeito de emoções básicas como o stress, a felicidade ou a tristeza.
As principais empresas de tecnologia estão a investir muito na integração de sensores cerebrais, através de formas muito subtis, como aquelas que temos nos relógios e anéis. Alguns exemplos podem incluir os fones de ouvido e até tatuagens vestíveis.
Algumas empresas, como a Neuralink de Elon Musk, já anunciaram que planeiam lançar uma interface neural, capaz de interagir com a nossa tecnologia, em realidade aumentada e virtual, até 2025.
O que é que estes sensores cerebrais conseguem realmente medir?
Estes dispositivos não são capazes de “ler” a mente, nem de entender em detalhe os nossos pensamentos. Para já, funcionam de uma forma similar à de uma eletroencefalografia (EEG), que capta a atividade elétrica do cérebro enquanto um indivíduo pensa ou realiza alguma ação.
Os nossos neurónios estão constantemente a disparar sinapses, que emitem pequenas descargas elétricas. Estas variações elétricas são captadas pelo EEG.
A interpretação deste padrão de atividade elétrica é realizada posteriormente, através de um algoritmo poderoso, capaz de reconhecer fenómenos de atenção, divagação e até sentimentos e emoções.
Se combinarmos estes sensores com a informação que nos é apresentada no telemóvel, é possível rastrear outro tipo de informações. Por exemplo, é possível medir e classificar os pensamentos / respostas de um indivíduo quando este está a analisar partidos políticos no seu próprio telemóvel pessoal.
Os investigadores estão a tentar perceber se estes dados conseguem revelar informação confidencial como números PIN e endereços de morada.
“Abrir” o cérebro: que consequências na nossa saúde mental e bem-estar?
Existem dispositivos, já aprovados, para tratar a depressão através de “neurofeedback” e estimulação elétrica do cérebro. É possível utilizar estes dados para detetar um distúrbio de saúde mental em estágios iniciais, ou até outros tipos de perturbações neurológicas.
Isto é monitorizado da mesma forma que a frequência cardíaca, respiração e número de passos dados.
O rastreio de dados de saúde mental será, no futuro, normalizado. Até para analisar coisas simples como se uma pessoa trabalha melhor em casa ou no escritório (de acordo com níveis de foco e atenção), se um copo de vinho afetou o seu sono, e por aí fora.
Tudo pode ser rastreado em termos de saúde mental e muitas empresas estão já a investir em formas de medir e quantificar estes dados.
Isto pode desencadear um movimento cerebral hipocondríaco?
Sem dúvida, é definitivamente possível, diz Nita Farahany. Apesar de conhecermos muito pouco sobre o cérebro humano, sabemos que existe uma grande diversidade entre cérebros, com atividades cerebrais muito distintas.
Numa primeira fase, e enquanto a tecnologia não estiver bem desenvolvida, estes algoritmos podem classificar um indivíduo como neuroatípico, erradamente.
Além disso, as próprias pessoas poderão analisar os seus dados, de modo a perceber se se devem ou não preocupar.
E isto pode gerar uma preocupação potencialmente desnecessária, em que as pessoas estarão constantemente a analisar os seus dados, de uma forma pouco saudável. E este cenário sim, poderá ser problemático.
Tecnologia primeiro, éticas depois. O que podemos fazer de antemão?
O direito à liberdade cognitiva deve passar a incluir os Direitos Humanos Internacionais. Isto implica atualizar os Direitos Humanos existentes e a nossa interpretação dos mesmos.
Este poderia ser um primeiro passo – estabelecer uma estrutura legal global e uma norma que reconheça a autodeterminação dos nossos cérebros e experiências mentais.
Outro fator importante tem a ver com os dados pessoais. O consumidor deveria poder controlar as suas informações pessoais e ter direitos sobre as empresas que os utilizam.
Atualmente, as empresas podem recolher, analisar e interpretar este tipo de dados para a finalidade que quiserem e bem entenderem. O ponto de partida passa por inverter este padrão e deixar de favorecer as empresas em detrimento dos indivíduos.
O que é a liberdade cognitiva e porque é tão importante?
Um dos maiores problemas deste tipo de tecnologia tem a ver a ver com o risco que acarreta para o nosso cérebro. A forma como o nosso cérebro é acedido, rastreado e até hackeado por estas tecnologias é muito diferente da do cérebro humano.
A liberdade cognitiva é o direito à autodeterminação sobre o nosso cérebro e implica atualizar o conceito de liberdade para a era digital em que vivemos.
O direito humano à privacidade deve incluir a privacidade mental.
O direito à liberdade de pensamento deve ser interpretado de uma forma livre, ausente de preconceitos associados a crenças e religiões. Por sua vez, o direito à autodeterminação deve conferir-nos o direito de aceder e mudar os nossos cérebros, se assim o entendermos.
Tecnologia do futuro ou apenas mais uma situação Google Glass vs Metaverso?
Nita Farahany diz que ficaria surpreendida se este tipo de tecnologia não se afirmar no futuro. Segundo a especialista em ética e neurotecnologia, sabemos tão pouco sobre o nosso cérebro que não faria sentido não usarmos esta tecnologia para benefício próprio.
As doenças neurológicas estão a aumentar e o impacto que estas tecnologias podem ter na nossa vida é extraordinário, salienta.
A saúde física e longevidade têm vindo a melhorar, mas o mesmo não se verifica na saúde mental e bem-estar. Se estes dispositivos nos derem as ferramentas necessárias para melhorar a saúde do nosso cérebro, não há razão para não os usar. Isso seria revolucionário.